quinta-feira, 14 de junho de 2012

IMPUGNAÇÃO DE DOCUMENTOS CONFORMADORES DO PROCEDIMENTO – ARTº 100º/2 CPTA


Proc. Nº 8655/12   TCAS  3 de Maio de 2012

1.No domínio específico a que se reporta, o nº 2 do artº 100º do CPTA tem o alcance de afastar o regime regra em matéria de impugnação de regulamentos (artº 73º nº 2 CPTA) sendo os interessados admitidos a recorrer aos tribunais, por antecipação, para prevenirem a prática de actos administrativos lesivos, em ordem a obter uma tutela jurisdicional mais rápida e efectiva do que aquela que apenas poderia resultar da utilização do tradicional meio, meramente reactivo, de impugnação dos actos lesivos

2. No tocante ao modo de contagem do prazo de um mês do artº 101º CPTA, esteja em causa a impugnação de acto endo-procedimental ou dos documentos conformadores do procedimento, caso a ilegalidade do acto ou do documento se repercuta no acto final, o termo ad quem do prazo de impugnação ocorre 1 mês após o acto final procedimental em causa


P…………. II – V…. …………, Unipessoal, Lda., com os sinais nos autos, inconformada com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa dela vem recorrer, concluindo como segue:

A) A questão que é colocada em crise com o presente recurso, centra-se em saber se a falta de impugnação das normas do programa de concurso ou do caderno de encargos, no prazo de um mês a contar da data do respectivo conhecimento, constitui impedimento para os interessados impugnarem outros actos procedimentais com fundamento em ilegalidades cometidas no procedimento.
B) Ora, salvo o devido respeito e melhor opinião, a impugnação das normas contidas no programa de concurso ou no caderno de encargos, prevista no nº 2 do artigo 100º do CPTA, constitui uma faculdade a que o interessado pode recorrer e não um ónus de impugnação.
C) Aquela faculdade traduz assim, de acordo com a doutrina, um acréscimo de garantia de tutela dos interessados.
D) O artigo 51º nº 3 do CPTA permite expressamente a impugnação contenciosa de actos ilegais praticados no procedimento, independentemente da impugnação de actos procedimentais.
E) Consagrando este normativo, em articulação com o nº l do mesmo artigo, o princípio da impugnabilidade dos actos que potencialmente tenham efeitos externos.
F) É, portanto, lícito ao recorrente impugnar, nos presentes autos, todos os actos praticados no procedimento que padecem de ilegalidade.
G) Sendo que a falta de conhecimento das impugnações invocadas não pode deixar de traduzir uma omissão de pronúncia na decisão recorrida.
H) O despacho de não adjudicação proferido pela Recorrida, com fundamento na alínea c) do n.º l do artigo 79º do CCP, se justificado pela necessidade de corrigir erros do programa de concurso, designadamente os alvarás solicitados no programa de concurso, tal como a Recorrida o fez, viola o disposto na norma invocada, na medida em que não estamos perante uma circunstância
imprevista.
I) A não realização, pela Recorrida, da audiência prévia em caso de despacho de caducidade da adjudicação violou de forma grave os direitos de defesa da Recorrente.
J) Para além disto, violou ainda expressamente o disposto no n.º 2 do artigo 86º do CCP, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto Lei nº 278/09, de 2 de Outubro o qual determina que "sempre que se verifique um facto que determine a caducidade da adjudicação (...) o órgão competente para a decisão deve notificar o adjudicatário relativamente ao qual o facto ocorreu, fixando-lhe um prazo não superior a 5 dias para que se pronuncie, por escrito, ao abrigo do direito de audiência prévia".
K) Esta notificação, conforme se encontra provado nos autos, foi totalmente omitida.
L) Ao não indemnizar a recorrente pela sua decisão de não adjudicação, a Recorrida violou o disposto no nº 4 do artigo 79º do CCP, o qual consagra o direito de indemnização a todos os concorrentes cujas propostas não tenham sido excluídas.
M) Tendo a proposta do Recorrente sido objecto de Adjudicação e tendo os actos ilegais praticados pela Recorrida determinado a não adjudicação e a não formalização do contrato, a recorrida está obrigada a indemnizar a Recorrente, não só pelos custos em que incorreu com a elaboração da sua proposta, mas também pelos danos e prejuízos sofridos por efeito da não celebração do contrato.
N) A sentença recorrida violou assim, entre outras normas, o disposto no artigo 100.5 e no artigo 51.5, ambos do CPTA.
O) Violou ainda o disposto na alínea c) do n.2 l e n.3 4 do artigo 79º, bem como o n.5 2 do artigo 86.3, ambos do CCP.

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A Recorrida E………… - Empresa Pública ………………………, EM contra-alegou, concluindo como segue:

A) Recorrente invoca nas suas conclusões dois vícios que alegadamente afectam o Saneador Sentença proferido pelo Tribunal a quo, a saber;
• A violação do disposto nos artigos 100° e 51° do CPTA (alínea n) das conclusões de recurso);
• A violação do disposto na alínea c), do n.° l, e n.° 4 do artigo 79°, bem como do n.° 2 do artigo 86°, ambos do CCP (alínea o) das conclusões de recurso).
B) Como resulta do pedido deduzido na Petição Inicial, a Recorrente invocou a ilegalidade da alínea c) do artigo 16 do Programa do Concurso, por considerar que aquela exigência viola normas imperativas do CCP, sendo, por isso, nula.
C) O Tribunal a quo tinha, assim, que decidir o pedido da Recorrente, julgando se a alínea c) do artigo 16 do Programa do Concurso, violava normas imperativas do CCP.
D) E para se pronunciar sobre esse pedido da Recorrente, tinha, primeiramente, de averiguar se estavam reunidas as condições estabelecidas na lei para o exercício desse direito (de acção) por parte da Recorrente, nomeadamente, se o mesmo era tempestivo, nos termos previstos nos artigos 89°, n.° l, alínea h), e 101°, ambos do CPTA, como fez, e bem, no Saneador Sentença.
E) Por outro lado, não se pode aceitar a interpretação defendida pela Recorrente para os artigos 51°, n.° 3, 100°, n.° 2, e 101°, todos do CPTA.
F) O artigo 51°, n.° 3, constitui uma norma geral face à norma especial do artigo 100°, n.° 2, do CPTA, devendo esta aplicar-se em detrimento daquela nos processos de contencioso pré-contratual, como expressamente decidiu o STA no Acórdão de 27 de Janeiro de 2011, citado no Despacho Saneador proferido pelo Tribunal a quo (proc. n.° 0850/10, in www.dgsi.pt), cuja doutrina subscrevemos integralmente.
G) Os processos de contencioso pré contratual são processos urgentes, cuja tramitação tem subjacente um objectivo de celeridade processual e segurança jurídica, não se concebendo que o legislador tivesse querido permitir que a indefinição e incerteza sobre a legalidade das peças do procedimento de formação pré contratual pudesse perpassar toda a tramitação do procedimento, sem qualquer consequência.
H) Acresce que, a norma do nº 3 do artigo 51º do CPTA é muito clara ao prever apenas a possibilidade de se impugnar actos interlocutórias ("actos procedimentais") através da impugnação do acto final do procedimento administrativo.
I) O Programa do Concurso não é um acto administrativo ou interlocutório, mas sim um regulamento administrativo, como prescreve o artigo 41° do CCP, não podendo, também por esse motivo, aplicar-se o nº 3 do artigo 51° do CPTA à impugnação do Programa do Concurso.
J) No que diz respeito à alegada omissão de pronuncia e violação do disposto na alínea c), do n.° l, e nº 4 do artigo 79°, bem como do n.° 2 do artigo 86°, ambos do CCP, não pode ignorar-se, na apreciação e decisão deste Recurso, que em rigor a Recorrente apenas impugna a decisão de não adjudicação proferida pela Recorrida e o não pagamento da indemnização prevista no nº 4 do artigo 79° do CCP, e não qualquer omissão de pronuncia cometida no Despacho Saneador.
K) Diga-se, no entanto, que a apreciação e decisão do pedido de indemnização feito pela Recorrente ao Tribunal a quo, pressupunha que os anteriores pedidos fossem julgados procedentes e que a Recorrida não celebrasse o contrato com a Recorrente, causando-lhe, desse modo um prejuízo.
L) Ora, tendo já caducado o direito da Recorrente impugnar a decisão da Recorrida que declarou a caducidade da adjudicação, não podia o Tribunal a quo conhecer o mérito do pedido de indemnização, que dependia da procedência daquela impugnação e da recusa da Recorrida celebrar o contrato com a Recorrente.
M) Muito menos podia o Tribunal a quo decidir se a não celebração do contrato com a Recorrente
constituía a Recorrida na obrigação de lhe pagar uma indemnização de 56.107,90 Euros, não só
porque se trata de um facto futuro e incerto, mas também porque o Tribunal a quo não podia
substituir-se à Recorrida na adjudicação do contrato objecto do concurso ora em crise.

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Com substituição legal de vistos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência – artºs. 36º nºs. 1 e 2 CPTA e 707º nº 2 CPC, ex vi artº 140º CPTA.

*
Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

1. Por anúncio publicado no Diário da República n.° 232, II Série, de 30 de Novembro de 2010, a E……… - Empresa …………….., E.M. lançou um procedimento de concurso público denominado «PROCEDIMENTO POR CONCURSO PÚBLICO INTERNACIONAL PARA …………..» (cfr. processo instrutor e fls. 17-19 do proc. cautelar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
2. O Programa do Concurso e o Caderno de Encargos do Concurso mencionado em L, encontram-se no processo instrutor, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor.
3. A Autora apresentou-se ao Concurso, apresentando a 7 de Janeiro de 2011 a proposta que consta do processo instrutor e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida.
4. A 9 de Fevereiro de 2011, o Júri concluiu o «Relatório Final de Análise das Propostas», mantendo neste a decisão de classificar a proposta da Autora em primeiro lugar e adjudicar àquela a prestação de serviço pelo valor de € 523.300,00 (IVA não incluído), decisão essa que a 17 de Fevereiro de 2011 foi publicitada na plataforma electrónica e notificada à Autora (cfr. fls. 45 e s., do proc. adm. apenso).
5. Simultaneamente, a Autora foi notificada para em cinco dias úteis, apresentar os documentos de habilitação, o que viria a concretizar através da entrega dos documentos solicitados com excepção das cópias do Alvarás para o exercício da actividade de transporte de valores e do Alvará de protecção pessoal (cfr. doe. fls. 53, no proc. cautelar apenso e acordo das partes).
6. A 25 de Fevereiro os concorrentes foram notificados da «Publicação dos Documentos de Habilitação» (cfr. doe. de fls. 54 do proc. cautelar apenso).
7. Posteriormente a tal publicitação, mas ainda no mesmo dia, a Autora foi notificada da «Notificação de Decisão de Adjudicação Caducada» e, subsequentemente, da «Notificação de Decisão de Não Adjudicação» (cfr. documentos de fls. 55 e 56, do proc. cautelar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
8. Foi introduzida na plataforma de concursos electrónicos, a propósito da decisão de «Não Adjudicação», o seguinte (cfr. doe. de fls. 57 do proc. cautelar apenso).
"3. Não adjudicar a coberto da alínea c), do n.° l, do art. 79.° do Código dos Contratos Públicos, conjugado com o n.° 3, desse artigo, e com o artigo 80º do CCP; Mantendo-se a necessidade de contratar e de se proceder a uma alteração de aspectos fundamentais das peças do procedimento (no caso concreto, a compatibilização entre o objecto do Contrato e os alvarás exigidos, com base no n.° 3 do artigo 79.° do CCP, repetição do procedimento, no prazo máximo de 6 meses e nos termos da regra geral de escolha do procedimento (previsto no artigo 18.° do CCP) e do valor máximo do benefício económico que pode ser obtido pelo adjudicatário com a execução do contrato a celebrar (de acordo com os limites ao valor do contrato constantes dos artigos 19.° a 21.° do CCP), propõe-se a adopção de um novo Concurso Público Internacional. Este ato pratica-se com a revogação da Decisão de Contratar, segundo o disposto no artigo 80.° do CCP."
9. A Demandada procedeu à abertura de novo concurso tendo por objecto a prestação dos serviços que constituíam o objecto do Concurso referido em 1. supra, tendo procedido à alteração de várias peças do procedimento (acordo das partes e doe. de fls. 126-128 do proc. cautelar apenso).
10. A Autora apresentou-se ao Concurso referido em 9. (cfr. doe. de fls. fls. 129 do proc. cautelar apenso e por acordo).
11. A 9 de Março de 2011 a Autora intentou a presente acção (cfr. registo a fls. 2).



DO DIREITO

a. impugnabilidade directa dos documentos conformadores de procedimentos pré-contratuais;

Acerca da interpretação do artº 51º nº 3 CPTA e do regime decorrente do artº 100º nº 2 CPTA, salienta a doutrina que “(..) o nº 2 do artº 100º introduziu, no nosso contencioso administrativo, uma modalidade inovadora de impugnação directa de normas regulamentares não imediatamente lesivas, que apenas projectem os seus efeitos na esfera jurídica dos interessados através da prática de actos administrativos concretos de aplicação. (..)
O nº 2 do artº 100º tem o alcance de afastar, no domínio específico a que se reporta, o regime regra em matéria de impugnação de regulamentos [cfr. artº 73º nº 2 CPTA], consagrando uma solução que vai contra toda a tradição do contencioso administrativo, de elaboração fundamentalmente jurisprudencial.
Com efeito, é tradicional no contencioso administrativo e entendimento, ditado por razões de economia processual, de que não se justifica proceder à impugnação de actos de que apenas resultem ameaças de lesão ainda não efectivadas. Há que aguardar pela efectivação da lesão para reagir. (..)
Ora, é desta lógica que o regime do nº 2 do artº 100º claramente se afasta, em defesa de outros valores, os valores promovidos pela directiva recursos, introduzindo uma modalidade inovadora de tutela preventiva, mediante a qual os interessados são admitidos a recorrer aos tribunais, por antecipação, para prevenirem a prática de actos administrativos lesivos, em ordem a obter uma tutela jurisdicional mais rápida e efectiva do que aquela que apenas poderia resultar da utilização do tradicional meio, meramente reactivo, de impugnação dos actos lesivos. (..)
Como, na verdade, claramente resulta da sua colocação sistemática, o nº 3 do artº 51º refere-se à matéria da impugnabilidade dos actos administrativos integrados numa sequência procedimental
É porque, à partida, existiria o ónus de impugnação destes actos, que o preceito vem afastar esse ónus, com a ressalva de duas excepções que nele são previstas. Estabelece, assim, o preceito que, por via de regra, ainda que um interessado não impugne um acto administrativo lesivo inserido num procedimento, nem por isso ele deixa de poder impugnar o acto final, com fundamento em ilegalidades cometidas durante o procedimento.
O preceito reporta-se, pois, às relações que se estabelecem entre os actos administrativos que são praticados durante a tramitação do procedimento administrativo.
Como é evidente não tem, assim, em vista uma realidade distinta, a que só o nº 2 do artº 100º se reporta, a da impugnabilidade directa dos documentos conformadores de procedimentos pré-contratuais, que não são actos administrativos, pelo que não estão submetidos ao respectivo regime de impugnação, regulado pelo artº 51º.
Afigura-se, pois, errónea a afirmação de que, nos casos previstos no nº 2 do artº 100º, existe um ónus de impugnação dos documentos conformadores dos procedimentos pré-contratuais porque este caso constitui uma excepção ao regime do nº 3 do artº 51º, tal como também se afigura errónea a afirmação de que, neste caso, não existe um ónus de impugnação por força do disposto no nº 3 do artº 51º. Ambas as afirmações dão, na verdade, por demonstrado o que, precisamente, cumpriria demonstrar: que, à partida, existe um ónus de impugnação dos documentos conformadores dos procedimentos pré-contratuais, cujo afastamento dependeria da aplicabilidade do previsão do nº 3 do artº 51. (..)
No caso do nº 3 do artº 51º, o legislador entendeu que, salvo no que respeita ao acto que exclui o interessado do procedimento ou dos casos previstos em lei especial, não é exigível a imposição do ónus de impugnação de actos que, estando inseridos nu procedimento administrativo, não sejam a resolução final desse procedimento. (..)” (1)

b. prazo de impugnação – artº 101º CPTA;

Acresce que - conforme decisão deste TCA tirada no rec. nº 6985/10 de 17.02.2011 - no que tange ao modo de contagem do prazo de um mês do artº 101º CPTA, esteja em causa a impugnação de acto endo-procedimental ou dos documentos conformadores do procedimento, caso a ilegalidade do acto ou do documento se repercuta no acto final, o termo ad quem do prazo de impugnação ocorre 1 mês após o acto final procedimental em causa, isto é, “(..) esse prazo não se conta a partir da prática do acto ilegal, mas da prática do acto final do procedimento (em princípio, do acto de adjudicação). Melhor dizendo, ele termina 1 mês após a adjudicação e corre desde a prática do acto endo-procedimental ilegal. É isso que resulta do facto de a ilegalidade do acto endo-procedimental se repercutir no acto final de adjudicação (..)
Quanto ao prazo de impugnação dos documentos conformadores do procedimento (..) esse prazo talvez não devesse começar a contar do acesso ao documento em causa (..) o prazo podia começar a contar do momento em que o interessado ficou colocado em condições concretas de deduzir a impugnação judicial, isto é, a partir do momento em que a ilegalidade (uma certa ilegalidade) do documento se tornou uma questão do procedimento. (..)
Para não dizer também que não veríamos necessariamente como má solução a de permitir a impugnação do documento por todo o tempo do procedimento até ao decurso de 1 mês após o acto de aplicação do documento ou até mesmo ao prazo de 1 mês a contar do acto final.
Na verdade, se a ilegalidade do documento se mantém operativa e invocável contra os actos de sua aplicação (em última instância, em princípio, a adjudicação), por que motivo não permitir a impugnação do documento nesses momentos? (..)”. (2)
Na mesma linha doutrinária no tocante aos documentos conformadores do procedimento “(..) não se afigura razoável submeter a impugnação destes documentos, que se destinam a vigorar pelo menos durante todo o período de pendência do procedimento pré-contratual, a um prazo preclusivo de um mês, contado desde a data em que eles se tornem acessíveis aos eventuais interessados. Coloca-se, em todo o caso, a necessidade de articular a possibilidade de impugnar, desde logo, as determinações contidas nos documentos em causa com a possibilidade de impugnar os actos administrativos que, ao longo do procedimento, podem ser praticados em aplicação ou, pelo menos, no pressuposto de tais determinações. (..)
Com efeito, o contencioso pré-contratual urgente deve ser, a nosso ver, encarado como uma unidade, nas duas modalidades em que, em conformidade com as Directivas recursos, o nº 1 e o nº 2 deste artº 100º o desdobram. Deve, por isso, entender-se que entre as previsões do nº 1 e do nº 2 existe uma relação de complementaridade, que explica o silêncio do segundo dos preceitos quanto à questão dos pressupostos processuais aplicáveis.
Tudo ponderado, parece-nos, pois, de entender que o prazo de um mês do artº 101º também vale para a impugnação dos documentos conformadores do procedimento pré-contratual. (..) o eventual não exercício da faculdade de impugnação concedida pelo artº 100º nº 2 não preclude a faculdade, que sempre existiria, da impugnação dos actos administrativos que, ao longo do procedimento, porventura venham a ser praticados em aplicação ou, pelo menos, no pressuposto da determinação ilegal contida no documento conformador não impugnado – maxime, a faculdade da impugnação do acto final do procedimento, com fundamento em todas as ilegalidades que ao longo do mesmo possam ter sido cometidas. (..)” (3)
*
Neste sentido e quanto ao caso presente, não pode subsistir o entendimento sustentado pelo Tribunal a quo de caducidade do direito de acção, fundada na circunstância de a sociedade Recorrente não ter impugnado a norma do artº 16º do Programa do Concurso, pelo que cabe revogar a sentença proferida, sendo que o probatório não permite conhecer em substituição pelos motivos seguintes.

*
A sociedade Recorrente deduziu o pedido múltiplo e subsidiário nos seguintes termos:
“(..) deve a presente acção ser declarada procedente e provada e, em consequência,
a) determine a rectificação do erro material constante da al. c) do Programa do Concurso, na parte em que determina a apresentação do alvará de transporte de valores como documento de habilitação e o consequente prosseguimento do procedimento ou, em alternativa, considera este exigência como violadora de normas imperativas do CCP e, como tal, nula;
b) ser anulada a deliberação de caducidade da proposta da A. proferida pela R.;
c) ser anulada a deliberação de revogação da decisão de contratar proferida pela R.;
d) ser mantida a deliberação de adjudicação da proposta da A., proferida pela R. e, em consequência,
e) deve a R. celebrar o contrato de aquisição de serviços com a A., de acordo com a proposta adjudicada.
Caso a R venha a praticar os actos de execução devida, com vista à reposição da legalidade deve a R. ser,
f) condenada a pagar à A. uma indemnização no valor de € 56 107,90 para reparação de todos os prejuízos sofridos pela A. (..)”
A ora Recorrente discute a bondade dos termos em que a habilitação para a execução do contrato se mostra expressa na respectiva cláusula do Programa do Concurso e, consequentemente, a bondade da decisão de caducidade da adjudicação, bem como da subsunção dos pressupostos da decisão de não adjudicação na previsão do artº 79º nº 1 c) CCP, concluindo pela condenação da entidade adjudicante a celebrar o contrato de acordo com a primitiva adjudicação a seu favor.
Peticiona ainda, em via subsidiária, a atribuição de indemnização por danos emergentes e lucros cessantes em valor concreto pela não celebração do contrato, pretensão indemnizatória que reitera no presente recurso, é um evidência que o probatório não permite apreciar a sustentação fáctica do enquadramento jurídico sustentado na petição, sendo certo que as partes alegam e controvertem matéria de facto que substancia, a título de causa de pedir, os pedidos múltiplo e subsidiário deduzidos.
De acordo com o probatório, a decisão de não adjudicação fundou-se na ocorrência de circunstâncias imprevistas impositivas de alteração das peças fundamentais do procedimento, no caso “a compatibilização entre o objecto do contrato e os alvarás exigidos” no Programa do Concurso, louvando-se a entidade adjudicante no disposto no artº 79º nºs. 1c) e 3 CCP – itens 7 e 8 do probatório.
Antes, porém, a ora Recorrente fora notificada da adjudicação da proposta por si apresentada, na qualidade de adjudicatária para apresentar os documentos de habilitação, apresentação notificada a todos os concorrentes – itens 4, 5 e 6 do probatório.
Todavia, antes da decisão de não adjudicação, a ora Recorrente foi notificada da declaração de caducidade da adjudicação – item 7 do probatório.
Também decorre do probatório que a entidade adjudicante abriu novo procedimento (artº 79º nº 3 CCP), com introdução de alterações várias nas peças do procedimento, a que a ora Recorrente apresentou proposta – itens 9 e 10 do probatório.
Em face da causa de pedir que substancia os pedidos múltiplo e subsidiário é uma evidência que o probatório não contém os fundamentos de facto passíveis de suportar juízo jurídico a emitir por este TCA, em via de substituição, traduzido no comando que configura o direito do caso concreto. (4)
Com a clareza que lhe é reconhecida, diz-nos Alberto dos Reis que "uma decisão sem fundamentação equivale a uma conclusão sem premissas; é uma peça sem base", sancionada, nos termos de art° 668° n° l b) CPC com a nulidade. (5)
Do que vem exposto resulta a insusceptibilidade de dar cumprimento ao disposto no art° 712° n° l a)
CPC, isto é, reapreciar, em via de substituição, o julgamento da matéria de facto provinda da 1a Instância, quando do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão e tendo por pressuposto que a decisão recorrida emitiu pronúncia sobre a matéria de facto.
Uma coisa é o tribunal de recurso em 2a Instância reapreciar o julgamento da matéria de facto e, por
substituição do tribunal recorrido e no sentido confirmativo da decisão, alterar o probatório aditando-lhe
factos decorrentes dos elementos fornecidos pelo processo, outra, completamente distinta, é renovar o
probatório de alto abaixo, ainda que com fundamento nos meios de prova constantes dos autos, e integrar as omissões da sentença tanto quanto aos factos essenciais identificadores da situação jurídica invocada pela parte como os factos complementares, indispensáveis à procedência da causa - art° 264° CPC. (6)
Aqui não se trata de ampliar, trata-se de fixar ex novo a factualidade que fundamenta a decisão e tal
não é adjectivamente possível por se traduzir na supressão de um grau de recurso no domínio da matéria de facto.
Em suma, é indispensável não só explicitar a matéria de facto na medida dos documentos que
substanciam a controvérsia vazada petição inicial pela ora Recorrente no confronto com os facto vazados na contestação pela ora Recorrida, matéria de facto absolutamente silenciada no registo da prova, o que impossibilita, como referido, este TCA de julgar em substituição, ex vi art° 712° n° s. l e 4, 1a parte, CPC.
Consequentemente, nesta parte impõe-se o recurso oficioso aos meios cassatórios de anulação da sentença proferida, por necessidade de ampliação da matéria de facto de acordo com a lei substantiva julgada aplicável em função das diversas soluções plausíveis em direito suscitadas pela substanciação dos pedidos - cfr. art°712° n° 4 CPC, ex vi art° 1° CPTA.


***

Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul - 2° Juízo em,

A) na procedência parcial do recurso, revogar a sentença proferida no segmento que declarou a caducidade do direito de acção;
B) anular ex officio a sentença proferida no segmento do probatório em ordem à ampliação da matéria de facto, ordenando a baixa dos autos à 1ª Instância para proceder em conformidade se a tanto nada mais obstar - art° 712° n° 4 CPC, ex vi art° 1° CPTA – ordenando a baixa dos autos à 1ª Instância .

Sem tributação.

Lisboa, 03.MAI.2012


(Cristina dos Santos) ……………………………………………………………………..

(António Vasconcelos) …………………………………………………………………..

(Paulo Carvalho) ………………………………………………………………………...

(1) Mário Aroso de Almeida, Artº 100º nº 2 CPTA: mera faculdade ou ónus de impugnação? – Ac. do STA de 27.1.2011, P.850/10, CJA/90 págs. 53-55.
(2) Rodrigo Esteves de Oliveira, O contencioso urgente da contratação pública, CJA nº 78, págs.10 e 13/15.
(3) Mário Aroso de Almeida, Manual …, págs. 342/343.
(4) Oliveira Ascenção, O direito - introdução e teoria geral, Fundação Calouste Gulbenkian, 2a edição, 1980 págs. 186. 488 e 489 - "Tudo o que assenta numa regra, deriva directamente da verificação histórica duma situação ou acontecimento que corresponde à previsão normativa (..)a sentença tem mais alguma coisa que mera aplicação (..) tem, justamente o comando dirigido às partes, para pautarem a sua conduta neste ou naquele sentido (..) dirige em determinado sentido a valoração genérica da lei (..) Logo, diremos que a sentença não cria o direito no caso singular, mas concretiza-o; nova o título da situação individual; e reforçado, nos casos normais, com um comando dirigido às partes (..)".
(5) Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V, Coimbra/1981, pág. 139.
(6) Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex/1997, 2a edição, pág. 70-75, 350/351, 415 e 446/447, 221

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