terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

DEFICIÊNCIA PROCEDIMENTAL - POSSIBILIDADE DE VOLTAR A FASE ANTERIOR

Processo nº 1219/2009 STA     2010-01-06

Atinge importância fundamental e merece clarificação a questão jurídica ínsita no Acórdão do TCA que alterando sentença de 1ª instância concluiu que a irregularidade cometida pelo júri do concurso regulado pelo DL 197/99, em virtude de ter admitido proposta a que faltavam dados de conteúdo (especificações do serviço a prestar) que eram exigidos pelo caderno de encargos e programa, é uma deficiência procedimental, mas não sendo detectada pelo júri, nem suscitada no acto de abertura e admissão das propostas, teria feito precludir a possibilidade de retornar a este ponto na fase seguinte de apreciação das propostas e, como consequência, também considerou haver impedimento à anulação judicial com fundamento naquela falta.

 Formação de Apreciação Preliminar
 Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do STA:
 I – Relatório:
A… instaurou no TAF de ... processo urgente de contencioso pré-contratual contra
MUNICÍPIO DE ...,
em que impugnou o despacho de 28/10/2008 emitido pelo Presidente da Câmara Municipal no âmbito do Concurso Público n.º 7/2008, aberto para prestação de serviços de iluminações de Natal de 2008 na cidade de ..., serviço esse que foi adjudicado à contra-interessada  B…
Nesse acção o A. formulou os seguintes pedidos:
a) anulação do despacho de Presidente da Câmara de ... datado de 28/10/2008 que adjudicou à B. a prestação de serviços de Iluminação para o Natal de 2008;
b) a sua substituição por outro despacho que adjudicasse aqueles serviços ao A.;
c) a anulação do contrato celebrado em 28/10/2006 entre o Presidente da Câmara Municipal de ... e a B… no âmbito do Concurso Público n.º 7/2008 acima mencionado.
Em termos factuais foi alegado e dado como provado que não foi apresentada pela firma escolhida a maquete a cores da ornamentação para a árvore do claustro da Câmara Municipal.
O TAF de ..., apesar de ter dado por verificados os vícios imputados pela A. à actuação impugnada, considerou, para efeitos do disposto nos arts. 102º n.º 5 e 45º do CPTA, que se verificava no caso uma situação de impossibilidade absoluta da satisfação dos interesses da A., atento o facto de a prestação de serviços em causa se reportar a período temporal concreto, já decorrido – o Natal de 2008 -, o que tinha determinado a extinção do objecto do concurso.
Neste contexto decidiu convidar as partes a acordarem no montante indemnizatório a que a A. tivesse direito, para o que ordenou o processamento ulterior dos autos nos termos previstos no art. 45º do CPTA.
Inconformado, o MUNICÍPIO DE ... interpôs recurso jurisdicional desta decisão junto do TCA- Norte.
Por Acórdão de 1/10/2009 foi concedido provimento ao recurso, revogada a decisão de 1ª Instância e a acção julgada improcedente.
Fundamentou-se o TCA-N no entendimento de nem o júri nem os concorrentes terem detectado e suscitado no momento próprio - na reunião de abertura e admissão -, a falta daqueles elementos da proposta que deveriam ter determinado a exclusão do candidato. E não tendo isso sucedido, não poderia posteriormente determinar-se a exclusão por se ter passado a uma fase ulterior do procedimento em que apenas se conhece do mérito das propostas e não mais dos respectivos requisitos formais ou mesmo de faltas relacionadas com o conteúdo exigido.
É deste Acórdão que a A… vem interpor revista nos termos do artigo 150º n.º 1 do CPTA, no qual pretende ver apreciadas as questões que sinteticamente se retiram das conclusões apresentadas a fls 359 e ss.:
a) Determinar se, tendo sido admitida a concurso público aberto ao abrigo do DL n.º 197/99 proposta que não respeitou as exigências do respectivo caderno de encargos, nomeadamente por não ter apresentado documentos necessários à indispensável avaliação estética e técnica das iluminações a contratar, poderá essa mesma proposta vir a ser excluída pelo júri do concurso em fase posterior ao acto público de abertura e admissão das propostas;
b) Decidir se o acto do júri, proferido no acto público, de admissão de proposta que não respeitava o caderno de encargos, tem de ser imediata e necessariamente impugnada contenciosamente pelos demais concorrentes para que seja obtida a anulação desse acto;
c) Saber se, tendo sida admitida em concurso público uma proposta que não respeitou as exigências do respectivo caderno de encargos, pode ser impugnado contenciosamente o acto administrativo final de adjudicação com fundamento nesse vício.
A Recorrente sustenta que estas questões preenchem os requisitos exigidos pelo artigo 150º n.º 1 do CPTA para a admissão da revista, não apenas pela relevância social da matéria, mas também pelo contributo importante que o STA poderia aportar no que concerne à melhor interpretação de normas do Código dos Contratos Públicos (designadamente as vertidas nos artigos 57º n.º 1 al. b), 70º n.º 2 al. a) e 146º n.º 2 al. a) uma vez que estabelecem disciplina jurídica muito próxima à que se discute nos autos a propósito do DL 197/99 no que concerne à exclusão de propostas contratuais e impugnação dos actos procedimentais.
O MUNICÍPIO DE ... apresentou contra-alegações nas quais pugna pela inadmissibilidade da revista por não se verificarem os respectivos pressupostos legais, pela manutenção da decisão recorrida e solicita ainda, na hipótese de a revista vir a ser admitida, a ampliação do objecto do recurso nos termos do art. 684-A do CPC.
III – Apreciação. Os pressupostos de admissão do recurso de revista.
O recurso de revista está regulado no artigo 150.º do CPTA como excepcional, com o sentido de reservado para aquelas situações em que estejam em causa questões jurídicas ou sociais tão relevantes que atinjam o grau «fundamental», ou ainda quando a intervenção do STA seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Para concretizar estes conceitos abertos esboçados pela previsão legal vertida no artigo 150º n.º 1 do CPTA, esta formação tem considerado que a relevância jurídica fundamental existe quando a questão a apreciar na revista – determinar com precisão o regime jurídico adequado à pretensão do A. com base nos factos fixados pelo tribunal de apelação e aplicá-lo -, é especialmente complexa e difícil, seja em razão de inovações no quadro legal; do uso de conceitos indeterminados; de remissões condicionadas à adaptabilidade a outra matéria das soluções da norma que funciona como supletiva e, em geral quando o quadro legal suscite dúvidas na doutrina e na jurisprudência.
No que concerne à relevância social fundamental de determinada questão, este pressuposto tem vindo a dar-se por verificado, designadamente nos casos em que o problema suscitado se apresenta como direito difuso, ou apesar de não ter essa natureza, as circunstancias são de molde a fazer prever que vai surgir no contencioso, de forma idêntica, em relação a um vasto número de interessados actual ou potencial, isto é, a questão e o modo de a decidir apresentam capacidade de se expandir com reflexos num assinalável número de casos que se sabe estarem pendentes ou é previsível que surjam no futuro.
A intervenção do STA tem sido entendida como claramente necessária quando esteja em causa questão cuja solução nas instâncias não seja estável, que suscite incerteza ou dúvida por se detectarem correntes diferentes quanto à respectiva solução, ou o assunto seja novo, sem que sobre ele se tenha pronunciado o STA, sendo de prever, razoavelmente, que nas circunstancias daquela causa e da pertinência com que nela são colocados os problemas jurídicos, a intervenção e pronúncia do órgão de cúpula do sistema de justiça administrativa pode contribuir para a estabilidade, segurança, previsibilidade e eficácia na aplicação do direito.
 Neste processo o litígio consiste essencialmente em saber se admitida uma proposta a concurso relativamente à qual faltam elementos documentais exigidos pelo programa e caderno de encargos, cuja irregularidade não foi suscitada na fase de admissão de propostas pelo respectivo júri nem pelos concorrentes presentes, poderá tal vício relevar com efeitos invalidantes na acção de impugnação do acto final de adjudicação.
No caso concreto a questão coloca-se no âmbito do DL 197/99, revogado pela entrada em vigor do Código dos Contratos Públicos mas, na perspectiva do recorrente, a admissão deste recurso excepcional justifica-se na medida em que esta mesma questão continuará a colocar-se em moldes semelhantes no âmbito do novo Código, sendo por isso a intervenção do STA útil e fecunda porque contribuiria para a melhor aplicação do direito. Invoca em defesa desta tese o disposto no artigo 51º n.º 3 do CPTA e a vigência do princípio da legalidade durante todo o decurso do procedimento conducente à celebração dos contratos da administração pública.
Vejamos se é de admitir a revista assim delimitada quanto ao respectivo objecto.
A filtragem e selecção obriga a ponderar os diversos elementos relevantes aportados pelo caso concreto, tal como definidos nas instâncias, bem como o estado da questão no contencioso administrativo visto no seu conjunto, em especial no contexto das decisões do STA sobre questões que relevem para a apreciação da revista a admitir, ou não.
No caso verifica-se que o Ac. do STA de 19-03-2003, P. 0492/03 decidiu:
“… no anúncio do concurso estabelecia-se que não seriam admitidas propostas com alterações às cláusulas do caderno de encargos (ponto 5 do anúncio, cuja cópia consta de fls. 15) e entre estas cláusulas incluiu-se a de que as máquinas deveriam ser equipadas com motores diesel de potência superior a 90 kw (cláusula 1 do ponto 20.1, cuja cópia consta de fls. 13).
Assim, não tendo sido anunciada a admissibilidade de propostas em que as máquinas fossem equipadas com motores não superiores àquela potência, é ilegal, por força daquele art. 8.º, n.º 1, a aceitação de propostas em que as máquinas não fossem equipadas com motor que satisfizesse esse requisito.
Por isso, a deliberação recorrida é anulável, por vício de violação de lei (art. 135.º do C.P.A.).
E no Ac. de 22/5/2003, P. 0808/03 decidiu o STA:
“O acto de admissão de uma dada proposta após exame da respectiva regularidade formal, apenas assegura a passagem da mesma à fase subsequente, não garantindo, pois, qualquer direito ou preferência na escolha ou selecção futura.
Daí que a circunstância de a proposta apresentada por um concorrente ter ultrapassado a fase de habilitação dos candidatos não obviasse a que - em fase ulterior, viesse a ser excluído por razões atinentes com a apreciação que a Comissão de Abertura do Concurso tivesse de empreender em sede da fase de qualificação e da análise das propostas”.
Por seu lado o Ac. do Pleno de 5/7/2005, no P. 1383703, refere em sumário:
“ O júri pode excluir uma proposta, ultrapassada a fase de admissão das propostas, se a mesma não contém um elemento essencial exigido pelo Programa de Concurso, com fundamento na sua inaceitabilidade (artº 106º, nº 3 do DL 197/99)”.
O Ac. de 29/04/2004, no P. 0309/04, afirma em sumário:
“ … e porque do Programa do Concurso constava a exigência de que os projectos das especialidades deveriam ser da responsabilidade de engenheiros licenciados era no acto público que cumpria apreciar se tal requisito se verificava pois que era nesse acto que cumpria analisar e hierarquizar as propostas apresentadas e, consequentemente, excluir a proposta em que parte desses projectos fossem subscritos por engenheiros técnicos”.
E o Ac. do STA de 18/7/2007, P. 0456/07, agora em matéria de empreitadas de obras públicas, refere, em sumário:
“A deliberação da Comissão de Abertura das Propostas no acto de elaboração do relatório referente à qualificação dos concorrentes em concurso de empreitada de obras públicas nos termos do artigo 98° do Decreto-Lei nº 55/99, de 2 de Março, concluindo que certo concorrente detinha aptidão técnica para executar a obra (e que assim passava à fase seguinte) já não pode posteriormente vir a ser revista, concretamente pela Comissão de Análise”.
Ainda sobre a admissão de uma proposta decidiu o Ac. de 27/01/2004, P. 01956/03:
“Não é contenciosamente recorrível por qualquer dos candidatos a um concurso público de fornecimento de serviços a decisão de admissão da proposta de outro, por carecer de lesividade actual”.
O caso vertente apresenta aspectos que podem ser entendidos como similitude parcial com aqueles Acórdãos do STA. Foi decidido no Acórdão recorrido com base numa interpretação do quadro legal que era o da vigência do DL 197/99, que agora se encontra substituído pelo Código dos Contratos Públicos, que elimina a distinção entre a fase de admissão e a fase de apreciação das propostas, como decorre entre outros dos art.º s 69.º e 70.º.
Ainda assim, permanece um espaço de aplicação daquele quadro legal que, embora revogado, deu lugar a um número significativo de litígios dos quais alguns, com grande probabilidade, se encontram ainda pendentes o que empresta utilidade objectiva, para além deste processo, ao esforço de clarificação da questão jurídica suscitada nestes autos, de saber se a admissão incontestada da proposta de um concorrente, no momento procedimental especificamente regulado - embora existissem razões de exclusão por falta de dados considerados obrigatórios pelos documentos que estruturam o concurso -, cristaliza e preclude a posterior exclusão na fase seguinte, de apreciação valorativa das propostas e também, havendo ou não tal preclusão procedimental, se mantém a possibilidade de controlo daquela falta como vício relevante e operante para efeitos anulatórios do acto final do concurso, maxime, em aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 51.º do CPTA.
Trata-se de questão com diversas vertentes e de importância superior ao comum na medida em que a respectiva solução tem relevância para o contencioso dos concursos de aprovisionamento de bens e serviços pela Administração, que no âmbito de aplicação temporal do DL 197/99 tenham dado lugar a litígios com o mesmo objecto central.
Os Acórdãos do STA que antes referimos são extremamente importantes e claros quanto aos aspectos tratados, no contexto factual e jurídico em que se movem, mas a questão colocada nestes autos não é exactamente a mesma, pelo que parece útil a apreciação do presente caso, tanto mais que o Acórdão do TCA não foi sensível às decisões adoptadas pelo STA e fundamentou a sua solução sem fazer qualquer apelo à jurisprudência do tribunal de cúpula, solução, aliás, que pode ser vista como divergente, da maior parte das decisões apontadas.
Ou seja, a questão jurídica tem importância fundamental e a intervenção do STA apresenta-se como claramente necessária para maior certeza e previsibilidade na aplicação do direito. Estão assim preenchidos os pressupostos de admissão da revista.
III – Decisão:
Em harmonia com o exposto, por se verificarem os pressupostos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, acordam em admitir a revista.
Sem custas nesta fase.
 Lisboa, 6 de Janeiro de 2010
 Rosendo Dias José (relator)
José Manuel da Silva Santos Botelho
Maria Angelina Domingues

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