sexta-feira, 1 de agosto de 2014

CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL – DECLARAÇÃO – ACEITAÇÃO - CADERNO DE ENCARGOS – PROCURAÇÃO - ASSINATURA ELECTRÓNICA - EXCLUSÃO DE PROPOSTAS - QUESTÃO PREJUDICIAL



Proc. Nº  040/14   STA      9  Abril  2014 

I – A procuração, emitida pelos gerentes de uma sociedade a favor de um sócio dela, que conferiu ao procurador «os poderes necessários para representar a sociedade para efeitos de contratação electrónica» destinava-se a atribuir a esse procurador – titular da assinatura digital de que a sociedade carecia – o «poder de representação e assinatura» a que alude o art. 27º, n.º 3, da Portaria n.º 701-G/2008, de 29/7.
II – Assim, tal procuração cingia-se à função de submeter documentos na plataforma electrónica onde correria o procedimento pré-contratual, não conferindo ao procurador o poder de, por si, obrigar a sociedade.
III – Se a declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos, cujo texto fora redigido como se ela emanasse da gerência daquela sociedade, não foi assinada pelos gerentes, tendo sido o dito procurador quem a assinou electronicamente, há que concluir que a mesma sociedade, ao menos nessa altura, não cumpriu o dever imposto no art. 57º, n.º 4, do CCP – sendo de revogar o aresto do TCA que decidiu em contrário.
IV – Se o TCA não apreciou, por prejudicialidade, as questões colocadas nos recursos de apelação e relacionadas com as consequências do incumprimento dito em III, mormente a da exclusão da proposta da referida sociedade, o STA não pode conhecer dessa matéria em substituição, por isso lhe ser vedado pelos arts. 679º e 665º, n.º 2, do CPC – devendo os autos baixar à 2.ª instância para que aí se prossiga no julgamento desses recursos.

Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
O Município de Aguiar da Beira interpôs a presente revista do acórdão do TCA-Sul que, embora por razões diversas das da 1.ª instância, confirmou a sentença do TAF de Castelo Branco que, julgando procedente a acção de contencioso pré-contratual dos autos, anulou «o acto de adjudicação – que incluíra a exclusão da proposta da autora A…………….., Ld.ª – e o contrato de empreitada de obras públicas subsequentemente celebrado entre aquele município e B……………, SA, condenando ainda tal município a retomar o procedimento administrativo do concurso público, sem reincidir nas ilegalidades detectadas.
O recorrente findou a sua alegação oferecendo as conclusões seguintes:
1 - O R Município não se pode conformar com o Acórdão do TCA Sul, que manteve o decidido na 1ª instância, ainda que com diferente fundamentação.
2 - Face ao decidido na providência cautelar apensa aos presentes autos, o contrato de empreitada foi aprovado e assinado pelas partes (o ora Réu e a contra- interessada), e a obra concluída.
3 - Tal como se decidiu na referida providência cautelar, não existe no procedimento concursal nenhum vício ou irregularidade grave que sustentasse a suspensão provisória do acto de adjudicação, pelo que o concurso prosseguiu os seus termos até à assinatura do contrato de empreitada e definitiva conclusão da obra.
Com efeito,
4 - A recorrida A……………, Ld.ª, concorreu através da plataforma electrónica ao concurso público de empreitada da obra pública “Beneficiação da Estrada Municipal de Aguiar da Beira à Cavaca” fazendo-se representar pelo sócio C…………..
5 - A Proposta (Anexo 1) e demais documentação, foi assinada electronicamente pelo referido sócio, com assinatura legalmente certificada.
6 – C……………, não é gerente da sociedade concorrente, pelo que, para cumprimento do disposto no n° 3 do artigo 27° da Portaria 701-G/2008 de 29/7 foi associada electronicamente um documento “PROCURAÇÃO” passada pelos gerentes a favor do representante da sociedade.
7 - A procuração em causa, apenas refere “(...) constitui seu procurador, C……………. (...) a quem confere os poderes necessários para representar a sociedade para efeitos de contratação electrónica.”
8 - Resulta do disposto no artigo 57°, n° 4 do Código dos Contratos Públicos, que “A declaração referida na alínea a) do n° 1 deve ser assinada pelo concorrente ou por representante que tenha poderes para o obrigar.”
9 - Entende-se no Acórdão recorrido que a simples menção “para representar a sociedade para efeitos de contratação electrónica” será suficiente para representar e obrigar a sociedade concorrente.
10 - O recorrente não pode aceitar tal entendimento, desde logo, porque o texto da procuração é omisso quanto aos poderes conferidos.
11 - Ora, tal omissão não se trata de uma mera irregularidade, antes da preterição de uma formalidade essencial, como decorre expressamente das disposições conjugadas constantes dos artigos 57°, 4 e 146°, 2 als. d) e e) do CCP.
12 - Efectivamente, a procuração em causa limita-se a conferir poderes gerais a um terceiro, não gerente, sem especificar, como determina o n° 6 do artigo 252° do CSC que actos se inserem nos poderes, abstractos, de representação.
13 - No âmbito da contratação pública, exige-se para além destes, poderes específicos para obrigar/vincular a concorrente, poderes que devem ser expressos, como se retira do n° 4 do artigo 260° do CS Comerciais (“4- Os gerentes vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade”)
14 - Se a qualidade de gerente pode ser aferida pela certidão permanente da concorrente, já assim não é nos casos em que a assinatura aposta não pertence aos gerentes, razão pela qual, sendo frequentes os casos de representação, a lei prevê essa possibilidade, reforçando porém a ideia de que os poderes de quem represente devem abranger os poderes de vincular a sociedade.
15 - A Declaração de aceitação do Caderno de Encargos, através da aposição da assinatura electrónica, assinatura essa que em regra deve relacionar o(s) assinante(s) com a concorrente, é um dos actos que expressam a vinculação da concorrente à proposta apresentada.
16 - Quando essa assinatura não pertence a quem tem poderes intrínsecos de vinculação da pessoa colectiva, deve a entidade interessada submeter à plataforma um documento electrónico oficial indicando o poder de representação e assinatura do assinante.
17 - No caso concreto, não só a assinatura digital aposta no Anexo 1 do concurso em causa, não relaciona o assinante com a concorrente (já que não sendo gerente, não tem poderes de representação da sociedade), como o documento adicionado electronicamente — procuração – não confere os poderes exigidos para o acto, isto é, os poderes de obrigar/vincular a concorrente.
18 - Ao contrário do entendimento da MM JUIZ da 1.ª instância, tal omissão não é uma mera irregularidade, sanável através da junção de documento no âmbito da fase de esclarecimentos.
19 - Muito menos se pode perfilhar o entendimento do Acórdão recorrido de que a expressão “representação em contratação electrónica” tem o alcance vasto de obrigar a sociedade, quando se sabe que o representante pode apenas ter poderes de submeter a proposta, sendo que não pode, se não tiver poderes para isso, vincular a sociedade ao Caderno de Encargos.
20 - É a própria lei (al. d) e) do n° 2 do art 146° do CCP) que sanciona a omissão dos poderes específicos para vincular a concorrente, no instrumento de mandato, com a exclusão do concurso.
21 - É que, ao contrário do entendimento do Tribunal “a quo” a exigência do n° 4 do artigo 57° do CCP não é uma mera irregularidade, antes uma “exigência substantiva, a de que quem vincula a empresa à aceitação do caderno de encargos, por meios electrónicos estabelecidos na lei, tem poderes para o fazer (in Acórdão do T Central Administrativa Norte de 22/6/2011).
22 - Neste sentido — SOBRE A ESSENCIALIDADE dos requisitos do artigo 57° do CCP – se pronunciou também este Supremo Tribunal Administrativo em Acórdão de 8/3/2012, proferido no processo 01056/11 (supra citado).
23 - Tratando-se de um requisito essencial, estava vedada ao Júri do concurso a possibilidade de convidar a concorrente A……………, Lda, em fase de esclarecimentos, a corrigir a sua proposta, pois tal está desde logo vedado pela lei.
24 - Com efeito, do artigo 72° do CCP resulta a possibilidade de o Júri pedir quaisquer esclarecimentos sobre as propostas apresentadas que considere necessários para a sua análise e avaliação, desde que, “não contrariem os elementos constantes dos documentos que as constituem, não alterem ou completem os respectivos atributos, nem visem suprir omissões que determinam a sua exclusão.
25- Ora, a falta de cumprimento do disposto no n° 4 do artigo 57° do CCP, determina precisamente a exclusão da proposta, nos termos expressos no artigo 146°, 2 alíneas d) e e).
26- Como se decidiu no Acórdão citado do STA, o artigo 72° do CCP prevê a possibilidade de “(..) pedir aos concorrentes quaisquer esclarecimentos sobre as propostas apresentadas que considere necessários para efeito de análise e da avaliação das mesmas” (art. 72.° nº 1 do CCP) também o é que estes pedidos não se destinam a suprir omissões ou insuficiências que determinem a invalidade substancial da proposta e que conduzam à sua exclusão nos termos do disposto na al. a) do n.° 2 do art.° 70.° ou do art.° 146.°/2 do CCP mas, tão só, a tornar mais claros os atributos da proposta ou os termos ou condições relativos a aspectos da execução do contrato. Isto é, a tornar mais compreensível o que nela já se encontrava, ainda que de forma menos inteligível já que tais esclarecimentos têm, unicamente, por função aclarar ou fixar o sentido de algo que já se encontrava na proposta e não de alteração do seu conteúdo ou dos elementos que com ela tenham sido juntos.”
28- Uma vez apresentada uma proposta, a mesma não pode ser alterada, e ainda que seja objecto de esclarecimentos, estes, como vimos, jamais podem alterar os atributos ou contrair os elementos constantes das propostas.
29- No caso em apreço, convidar a concorrente A………….., Ld.ª a juntar novo documento (procuração) seria ultrapassar os limites dos esclarecimentos previstos no artigo 72° do CCP em clara violação dos princípios da intangibilidade das propostas e da igualdade dos concorrentes.
30 - Pelo exposto, o Acórdão recorrido fez errada interpretação dos preceitos vertidos nos artigos 57°/4, 146°/2 alíneas d) e e) e ainda do artigo 72°, 2, todos do Código dos Contratos Públicos.

Não houve contra-alegação.

A revista foi admitida pelo acórdão do STA de fls. 517 e ss., da responsabilidade da formação a que alude o art. 150º, n.º 5, do CPTA.

O Ex.º Magistrado do MºPº junto deste STA emitiu douto parecer no sentido de que se revogue o acórdão recorrido e se ordene a baixa dos autos ao TCA-Sul para conhecimento das questões colocadas pelos apelantes e cuja análise ficou prejudicada pelo sentido decisório do aresto.
A autora e ora recorrida veio ao processo, a fls. 544 e ss., pronunciar-se contra o que se propôs em tal parecer.

A matéria de facto pertinente é a dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui damos por integralmente reproduzida – como ultimamente decorre do que se estatui no art. 663º, n.º 6, do actual CPC.

Passemos ao direito.
O acto impugnado na acção dos autos – acção de contencioso pré-contratual, relativa à formação de um contrato de empreitada de obras públicas – excluiu a proposta da sociedade autora, que aqui figura como recorrida, porque a sua declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos, exigível nos termos do art. 57º, n.º 1, al. a), do CCP, não fora assinada por quem detivesse poderes para a obrigar («vide» o n.º 4 do mesmo art. 57º).
Essa pronúncia de exclusão apropriou-se de tudo o que o júri do concurso expendera a tal respeito no seu relatório final. Ora, e a propósito desse assunto, o júri vira-se confrontado com os seguintes factos (os quais constam da factualidade provada):
«Primo», a sociedade autora concorrera sem dispor de um certificado digital, ou seja, ela não era titular de uma assinatura digital que lhe permitisse assinar – evidentemente que por mediação de um seu representante – os documentos que carregasse na plataforma electrónica onde correria o procedimento pré-contratual. A recorrida – que não contra-alegou na revista – veio negar esse facto na conclusão 2.ª da resposta que, neste STA, opôs ao parecer do Exm.º Magistrado do MºPº, pois disse aí que o certificado digital lhe pertencia. Trata-se, contudo, de uma negação inútil, senão temerária, e por três razões: porque o acto disse («per relationem») que o certificado digital usado pela recorrida estava na titularidade do Sr. C………….., sócio dela sem poderes de gerência – e esse pressuposto de facto não foi afrontado na acção; porque o documento de fls. 119, aliás oferecido pela autora, comprova claramente isso mesmo; e, em geral, porque se trata de um facto que está assente desde a 1.ª instância sem que a recorrida o questionasse, junto do TCA, nos termos do art. 684º-A, n.º 2, do anterior CPC.
«Secundo», foi aquele Sr. C………….. quem, como titular da assinatura digital, submeteu à plataforma electrónica todos os documentos emanados da autora no âmbito do concurso.
«Tertio», um desses documentos consistiu numa procuração passada pelos gerentes da autora a favor desse Sr. C………….., sendo-lhe aí conferidos «os poderes necessários para representar a sociedade para efeitos de contratação electrónica».
«Quarto», outro desses documentos foi a declaração, que adviria dos mesmos gerentes, de que, «tendo tomado inteiro e perfeito conhecimento do caderno de encargos» do contrato de empreitada em causa, assumiam que a sociedade sua representada se obrigava «a executar o referido contrato em conformidade com o conteúdo do mencionado caderno de encargos», cujas cláusulas aceitavam «sem reservas».
Perante isto, o júri considerou essencialmente o seguinte (que o acto impugnado depois secundou):
Que a procuração conferira ao Sr. C……………. «os poderes necessários para representar a sociedade para efeitos de contratação electrónica».
Que essa procuração não conferira ao procurador poderes para obrigar a sociedade.
Que o oferecimento da procuração, sendo ela demonstrativa de que o representante não tinha poderes para obrigar a sociedade, ilidia a presunção, ínsita no art. 7º, n.º 1, al. a), do DL n.º 290-D/99, de 2/8, de que o procurador dispunha dos «poderes bastantes» para representar a sociedade autora.
E que, não estando a declaração prevista no art. 57º, n.º 1, al. a), do CCP assinada – e parece que o júri pensava numa assinatura electrónica – pela sociedade concorrente, ou por um representante que tivesse poderes para a obrigar, a autora teria omitido o dever mencionado no art. 57º, n.º 4, do CCP, impondo-se a exclusão da sua proposta.
As instâncias centraram-se no alcance da procuração conferida pela sociedade ao titular da assinatura electrónica e concluíram que o acto de exclusão era ilegal. Mas chegaram a esse resultado por caminhos diferentes. Para o TAF de Castelo Branco, a procuração não conferira ao procurador os «poderes especiais» que lhe permitiriam obrigar a sociedade – motivo por que a declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos não podia ser descortinada na mera aposição da assinatura electrónica pelo procurador. Obtida tal certeza, o TAF entrou na questão seguinte, que era a de apurar as consequências da falta de assinatura da declaração; e, na óptica da sentença, o júri deveria ter pedido à autora esclarecimentos sobre o assunto e, em face do teor de uma nova procuração que a autora oferecera na fase da audiência prévia, deveria mesmo ter concluído que a irregularidade ficara sanada.
Já para o TCA, o júri e o acto teriam errado em toda a linha, pois a procuração inicial conferira logo ao procurador os poderes bastantes para ele representar e obrigar a sociedade – de modo que a declaração de concordância com o conteúdo do caderno de encargos estaria por ele assinada através da assinatura digital. Portanto, o TCA não conheceu, por prejudicialidade, dos segmentos dos recursos de apelação, do município e da sociedade vencedora do concurso, em que se sindicava a obrigatoriedade – aceite pelo TAF – do júri pedir esclarecimentos à aqui recorrida e de julgar sanada a falta de assinatura naquela declaração.
Nesta revista, o município recorrente ataca a solução do acórdão «sub specie» – ainda que também censure a da sentença – reiterando a bondade da actuação do júri e a legalidade do acto impugnado. E, quanto às críticas dirigidas ao aresto do TCA, o recorrente é acompanhado pelo Ex.º Procurador-Geral Adjunto neste STA, cujo parecer, na linha do que julgara o TAF, recusa que o âmbito da procuração permitisse ao procurador vincular a sociedade representada «através da declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos».
Antes de propriamente vermos se o TCA-Sul decidiu com acerto, convém apontar dois equívocos, presentes no discurso do júri e na perspectiva por que o problema foi encarado e resolvido no processo. E essa tarefa é útil porque depurará a «quaestio juris» ora em apreço de várias excrescências que a obscurecem.
A sociedade autora não dispunha de um certificado digital, motivo por que a submissão da sua proposta («vide» o art. 19º, n.º 2, da Portaria n.º 701-G/2008, de 29/7) foi efectuada por um terceiro, aliás seu sócio, que era titular de uma assinatura electrónica. Mas, se a sociedade autora não era «titular da assinatura digital» utilizada, cai logo pela base o discurso do júri sobre a presunção prevista no art. 7º, n.º 1, al. a), 2.ª parte, do DL n.º 290-D/99, de 2/8, e a sua elisão; pois essa parte da norma pressupõe que a «pessoa colectiva» seja «titular da assinatura digital».
Acresce que essa presunção nada tem a ver com a problemática posta no processo. Tal preceito limita-se a fazer presumir a genuinidade da aposição de uma assinatura digital. E essa genuinidade não foi questionada «in casu», já que ninguém recusou que fora o Sr. C……………., inequivocamente credenciado para a subscrição electrónica de documentos, o efectivo autor da aposição da assinatura digital – mormente na declaração de adesão ao teor do caderno de encargos.
Portanto, o discurso do júri sobre aquela presunção, que legitimaria a proposta, e sobre a ulterior elisão dela – aliás, algo irónica, porque a representação presumida seria negada pelos poderes representativos do procurador assinante – não tem cabimento. Mas veremos «infra» que este lapso argumentativo do júri (e do acto) é completamente inócuo.
Por outro lado, vê-se logo que algo não está bem quando continuamente se pergunta nos autos se o procurador podia, através da sua assinatura electrónica, ser o subscritor de uma declaração (de aceitação do conteúdo do caderno de encargos) que, «expressis verbis», se dizia emanada dos gerentes da sociedade. Uma declaração dessas, porque vinculativa da sociedade, deve provir da gerência (arts. 252º, n.º 1, e 260º do Código das Sociedades Comerciais), ainda que a sua manifestação pudesse ser conferida pelos gerentes a um procurador (n.º 6 do mesmo art. 252º do CSC – regra que deve ser entendida sem prejuízo da pessoalidade da gerência). O que não parece fazer sentido é que a mencionada declaração surja em nome dos gerentes e, não havendo necessidade de mais nada, em termos puramente declarativos, para lhe conferir efectividade prática – salvo, evidentemente, a assinatura da mesma declaração pelos gerentes – apareça depois um procurador a subscrevê-la, assumindo-a por si. E assinalamos esta anomalia porque ela será fecunda mais tarde, quando atentarmos no alcance da procuração.
O art. 57º, n.º 4, do CCP exige que a aludida declaração, que é tomada como um dos elementos constituintes da proposta (n.º 1 do artigo), seja «assinada pelo concorrente ou por representante que tenha poder para o obrigar». Esta segunda hipótese refere-se, desde logo, às pessoas colectivas, cuja vontade de contratar tem de ser formada pelos seus representantes. Nas sociedades por quotas, tais representantes são os gerentes; e é errado supor que estes, por procuração, podem abdicar de facto da gerência, transferindo para outrem os poderes de gestão que estatutária e legalmente lhes incumbem – o que se oporia ao princípio da pessoalidade da gerência e ao correspectivo regime da responsabilidade dos gerentes para com a sociedade e os sócios. O que, todavia, não exclui que os gerentes duma sociedade por quotas possam fazer-se substituir, «ad hoc», por um procurador na expressão da sua prévia vontade de contratar.
E aproximamo-nos agora do cerne do problema. A declaração prevista no art. 57º, n.º 1, al. a), do CCP foi escrita como provinda realmente dos gerentes da sociedade autora – como tinha de ser. Contudo, eles não apuseram nesse texto a sua assinatura manuscrita – ao invés do que fizeram na procuração passada a favor do Sr. C…………….., onde conferiram os «poderes para representar a sociedade para efeitos de contratação electrónica». Assim, tal declaração, que findou com a menção de que emanava da «gerência», carece das assinaturas dos gerentes da sociedade; e, no exacto lugar dessas assinaturas, consta dela que se trataria de um «documento assinado digitalmente».
Temos, portanto, que a declaração entrou na plataforma electrónica sem estar assinada pelos gerentes da autora. E há que ver se o TCA andou bem ao desvalorizar isso, por entender que a assinatura electrónica do procurador bastava para obrigar a sociedade.
Sabemos que esta não tinha o certificado digital que lhe permitiria submeter propostas às plataformas electrónicas. Tal carência não impedia a autora de se apresentar a concursos do género, já que os documentos a carregar nessas plataformas – onde todos eles, seja qual for o seu tipo, devem ser assinados electronicamente (art. 27º, n.º 1, da Portaria n.º 701-G/2008, de 29/7) – poderiam ser assinados por um terceiro, titular de assinatura digital. Contudo, quando o assinante seja um terceiro, o seu certificado digital não permite relacioná-lo directamente com a sua «função» (a função de entregar electronicamente os documentos) e o seu «poder de assinatura» (o poder de assinar essa entrega, «in hoc casu»). Daí que o n.º 3 do mesmo art. 27º, para garantia de que o assinante (por meio duma assinatura digital) serviu deveras a «entidade interessada», imponha que esta submeta «à plataforma um documento electrónico oficial indicando o poder de representação e assinatura do assinante».
O júri e o autor do acto entenderam que a procuração passada pelos gerentes da autora ao titular da assinatura electrónica – procuração para ele «representar a sociedade para efeitos de contratação electrónica» – era deste último tipo, isto é, destinava-se a comprovar aqueles poderes «de representação e assinatura do assinante». E cremos que bem.
Esse «poder de representação», previsto no art. 27º, n.º 3, da mencionada Portaria, reporta-se à «função», aludida no preceito; e, como a norma trata das cautelas a adoptar face à conduta de um terceiro subscritor, tal «função» tem necessariamente de ser a própria de um terceiro. Ora, a função própria de um terceiro é a de alguma coadjuvação, que aqui consiste na actividade de entrega, na vez do concorrente, das peças indispensáveis. Sendo assim, o «poder de representação», referido no n.º 3 do art. 27º da Portaria n.º 701-G/2008, confina-se a essa actividade – nada tendo a ver com a formação da vontade de contratar, ou seja, com a ideia de que o assinante, enquanto tal, estaria a obrigar a sociedade.
Portanto, a procuração passada pelos gerentes da autora a favor do Sr. C…………… enquadra-se harmoniosamente na previsão, constante daquele art. 27º, n.º 3, de que eles aí outorgaram, a favor do terceiro assinante, um «poder de representação». Poder este que tinha de corresponder à conduta que ele ulteriormente desenvolveria e que era, não a de formar e enunciar, «motu proprio», a vontade da concorrente, mas apenas a de comunicar na plataforma electrónica essa vontade, formada e assumida alhures pelos gerentes da autora.
E a letra da procuração revela-o de modo flagrante; pois, «representar a sociedade para efeitos de contratação electrónica» corresponde, precisamente, ao «poder de representação e assinatura» de que fala o art. 27º, n.º 3, da aludida Portaria.
Ao que acresce o que «supra» entrevimos: que careceria de sentido que uma declaração que se apresentava como emanada da gerência fosse assumida por um terceiro.
E é agora óbvio o lapso em que a autora incorreu no concurso dos autos. Ela confundiu a assinatura da declaração prevista no art. 57º, n.º 1, al. a), do CCP, indispensável à enunciação da vontade de contratar, com a assinatura digital dos documentos por terceiro, necessária para carregá-los na plataforma electrónica. Com efeito, a exigência dessa assinatura digital, porque primariamente ordenada à genuinidade do nexo entre os documentos carregados e a «entidade interessada» nesse carregamento, abrange-os a todos (cf. o art. 27º, n.º 1, da Portaria n.º 701-G/2008 – mesmo àqueles que, não contendo uma qualquer declaração do apresentante, que ele devesse assumir, não precisassem de assinatura, nos termos gerais. E, assim como a assinatura digital se tem de apor relativamente a documentos não assináveis, também convirá que a assinatura autógrafa se aponha nos documentos carregados por terceiro que a reclamem – sem embargo destes também necessitarem da assinatura digital para poderem ser carregados na plataforma electrónica. Deste modo, a presença da assinatura digital do procurador da autora não supre a falta de assinatura nalgum documento que devesse ser assinado pelos gerentes dela – o que se deve ao pormenor dessas assinaturas, autógrafa e digital, cumprirem fins diversos.
Assim, é seguro que o acórdão recorrido errou ao supor que a assinatura digital, feita por um terceiro, da aludida declaração de concordância significava juridicamente que a autora, ainda que através de representante, subscrevera essa declaração. Neste ponto, a 1.ª instância decidiu melhor – ao concluir que a autora e aqui recorrida realmente omitira a apresentação, no concurso, daquela declaração assinada.
Depois de assim concluir, o TAF de Castelo Branco abordou as consequências dessa falta – acabando por julgá-la irrelevante, motivo por que anulou o acto. Essa irrelevância foi questionada nas apelações. Mas não foi enfrentada pelo TCA – e, processualmente, bem – já que o conhecimento desse assunto ficara prejudicado pela solução que o acórdão «sub specie» deu ao caso (art. 660º, n.º 2, do CPC anterior).
Ora, e como o Ex.º Procurador-Geral Adjunto assinalou, este STA não pode substituir-se ao tribunal recorrido e conhecer imediatamente das questões prejudicadas – por a tal se opor o disposto nos arts. 679º e 665º, n.º 2, do CPC actual e aqui aplicável. Donde a necessidade dos autos baixarem ao tribunal «a quo» a fim de que se prossiga no conhecimento dos recursos de apelação. E isto significa que está fora do «thema decidendum» o segmento da revista onde o recorrente acomete a parte da sentença que o TCA não apreciou.

Nestes termos, acordam em conceder a revista, em revogar o acórdão recorrido e em determinar a baixa do processo ao TCA-Sul para que aí se conheça da matéria colocada nos recursos de apelação e ainda não apreciada, se nenhum outro obstáculo a isso houver.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Abril de 2014. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – António Políbio Ferreira Henriques – Vítor Manuel Gonçalves Gomes

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