ACÓRDÃO Nº 16 /8.Jun.2010/1ª S/PL
Recurso Ordinário nº 10/2010
(Processo nº 105/2010)
I – RELATÓRIO
1. O Instituto Nacional de Emergência Médica, IP (INEM),
inconformado com o Acórdão nº 14/2010 que, no acima referido processo, recusou
o visto ao contrato de prestação de serviços celebrado em 31 de Dezembro de
2009, com a empresa “FINLOG – Aluguer e Comércio de Automóveis, SA”, com
o encargo máximo estimado de 2.000.000,00 €, acrescido de IVA, tendo por
objecto a “Prestação de serviços de gestão de frota do INEM”, veio dele
interpor recurso.
2. A recusa de
visto fundamentou-se na alínea a) do nº3 do artigo 44º da LOPTC1, e baseou-se,
nos seus aspectos essenciais, nos seguintes fundamentos:
a) [O] presente contrato tem por objecto serviços similares
dos que foram objecto do contrato que foi oportunamente visado por este
Tribunal (…), mas o contrato visado pelo Tribunal de Contas foi precedido de
ajuste directo, nos termos do artigo 24º, nº1, al. a) do CCP.
b) Para que o presente contrato”, ao abrigo do
artigo 27º, nº1, al. a) do CCP, “pudesse ter sido precedido de ajuste
directo, necessário era que o anterior contrato (aquele através do qual foram
contratados serviços similares) tivesse sido precedido de concurso público ou
de concurso limitado por prévia qualificação, o que não aconteceu.
c) Logo não se verificaram os pressupostos necessários para
que, no caso em apreço, se pudesse adoptar o procedimento por ajuste directo.
d) (…) “face ao valor do contrato, e atento o disposto no
artigo 20º, nº1, al. b) do CCP, era necessária, no caso vertente, a realização
de um concurso público ou de um concurso limitado por prévia qualificação. Ora,
não tendo sido realizado nenhum destes procedimentos, resulta desta norma legal
que o contrato não podia ter sido celebrado. A ausência do concurso, quando
obrigatório, - como é o caso - implica a falta de um elemento essencial da
adjudicação, o que determina a respectiva nulidade, nos termos do artigo
133º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), como tem sido
entendimento pacífico e reiterado deste Tribunal. Esta nulidade pode ser
declarada a todo o tempo e origina a nulidade do contrato, nos termos do
disposto no artigo 283º, nº 1, do Código dos Contratos Públicos.
A nulidade é fundamento de recusa de visto, como estabelece a
alínea a) do nº 3, do artigo 44º” da LOPTC.
3. Na sua petição de recurso que aqui se dá por integralmente
reproduzida, o Instituto Nacional de Emergência Médica, IP, conclui no
seguintes termos:
a) “A decisão de uma entidade adjudicante que verifica a
situação de deserção de um concurso público não determina a revogação da
decisão de contratar, mas apenas declara a caducidade do
concurso público;
b) A escolha de um procedimento por ajuste directo ao abrigo
da alínea a) do n.° 1 do artigo 24.° do CCP, por ter ficado deserto um concurso
público anterior, é um ato geneticamente ligado ao concurso público original
porque esta decisão não pode introduzir alterações substanciais, e deve ser
tomada no prazo máximo de 6 meses sobre a data limite para a apresentação de
propostas nos termos do número 6 do artigo 24.° do CCP;
c) Por isso, um ajuste directo celebrado ao abrigo da alínea
a) do n.° 1 do artigo 24.° do CCP é uma sequência de um concurso público
deserto, tal como os ajustes directos posteriores, até ao limite de 3 anos
admitidos nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 27.° do CCP;
d) A expressão “na sequência” de concurso público ou de concurso
limitado por prévia qualificação que constitui requisito da possibilidade de
adopção de ajuste directo para a repetição de serviços nos termos da alínea a)
do n.° 1 artigo 27.° do CCP deve ser interpretada como abrangendo a situação em
que o concurso público ficou deserto e o primeiro contrato foi celebrado
mediante ajuste directo ao abrigo da alínea a) do n.° 1 do artigo 24.° do CCP;
e) A duração do contrato e a possibilidade de repetição de
serviços mediante ajuste directo constituem condições substanciais que não
podem ser alteradas para efeitos do disposto na alínea a) do n.° 1 do artigo
24.° do CCP;
f) O Acórdão recorrido viola o disposto na alínea a) do n.º 1
do artigo 24.° do CCP quando não admite o recurso à repetição dos serviços nos
termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 27.° do CCP, porquanto afasta a
proibição de haver alterações substanciais;
g) O Acórdão recorrido viola o disposto na alínea a) do n.° 1
do artigo 27.° do CCP quando interpreta a referida disposição no sentido de não
haver sequência entre um concurso público deserto e um ajuste directo celebrado
com esse fundamento.
h) Nestes termos e nos demais de Direito que o Tribunal
doutamente suprirá, requer-se a revogação do Acórdão n.° 105/2010 de 13 de
Abril de 2010, e a sua substituição por outro que conceda Visto ao contrato de
prestação de serviços celebrado em 31 de Dezembro de 2009 entre este Instituto
e a empresa FINLOG - ALUGUER E COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, S.A.”.
4. O Ministério Público pronunciou-se pela improcedência do
recurso, em bem fundamentado parecer.
5. Foram colhidos os vistos legais.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6. Nos seus aspectos essenciais, as alegações e conclusões da
petição de recurso defendem ser legalmente admissível a celebração de
sucessivos contratos por ajuste directo nos casos de “repetição de serviços
similares”, desde que ocorra na sequência de anterior concurso público ou
limitado por prévia qualificação, que tenha ficado deserto, mas que a ele
estariam “geneticamente ligados”, desde que, designadamente, tal
celebração se faça no prazo de 3 anos, e nos documentos do referido anterior
concurso se previsse tal possibilidade, de acordo com as disposições normativas
dos artigos 24º e 27º e respectivos nºs. 1, alíneas a), do CCP.
7. Desde já se refira que se aceita a argumentação que defende
que o procedimento de ajuste directo desencadeado ao abrigo da alínea a) do nº
1 do artigo 24º do CCP está “geneticamente ligado” ao concurso público
ou concurso limitado por prévia qualificação original que tenha ficado deserto,
dado que, como determina a lei, “o caderno de encargos e,
se for o caso, os requisitos mínimos de capacidade técnica e financeira” não
podem ser substancialmente alterados3, e a decisão de escolha do ajuste directo tem de ser “tomada
no prazo de seis meses a contar (…) do termo do prazo fixado para a
apresentação de propostas ao concurso.
8. Tal argumentação é aceite independentemente de se considerar
que, no caso de concurso deserto, e tendo presente o que dispõem os artigos 79º
e 80º do CCP, há decisão de não adjudicação ou mera constatação de tal deserção
e, se, em consequência, ocorre por força de lei revogação da decisão de
contratar ou esta se mantém. Para o caso em apreciação é indiferente a
interpretação que se faça destas disposições normativas e a solução que dela
resulte. A referida “ligação genética” resulta do disposto no artigo 24º
do CCP e não da solução que resulte dos artigos 79º e 80º.
Assim, a impugnação que, no início da petição de recurso se
faz5, do trecho da
decisão recorrida em que se afirma que “o Conselho Directivo do INEM revogou
a decisão de contratar no âmbito do citado concurso, nos termos das disposições
conjugadas dos artigos 79º, nº1, al. a) e 80º, nº1, ambos do CCP6” perde
relevância.
Ainda assim, apesar de não se justificar, no presente
processo, uma análise e interpretação aprofundada daquelas disposições legais,
diga-se contudo que:
a) Tal trecho da decisão recorrida resulta directamente de
documentos do INEM que colheram decisões autorizadoras do respectivo Conselho
de Administração;
b) O concurso público constitui um procedimento
administrativo (vide artigo 16º e todo o Título I da parte II do CCP). Este,
nos termos do nº 1 do artigo 1º do Código do Procedimento Administrativo (CPA)
é “a sucessão de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da
vontade da Administração Pública ou à sua execução”.Tal sucessão de actos e
formalidades traduzem-se em documentos que, por sua vez, constituem o processo
administrativo, como dispõe o nº 2 do mesmo artigo do CPA. Ora, havendo um
procedimento de concurso e correspondente processo, nele há-de constar decisão
de abertura de procedimento, antecedida de decisão de contratar. E, caso fique
deserto, necessário é produzir decisão que conclua o procedimento e o
correspondente processo. E se, na sequência de tal conclusão, for decidida a
abertura de novo procedimento – neste caso foi o de ajuste directo - nele e no
correspondente processo há-de necessariamente constar tal decisão e a da
necessária e subjacente decisão de contratar;
c) E, em consonância com o que acaba de ser dito, relembre-se
que o artigo 80º do CCP diz, na sua letra, expressamente, que “[a] decisão
de não adjudicação prevista no artigo anterior determina a revogação da decisão
de contratar”. E, como se sabe, o elemento literal da interpretação não
pode ser facilmente desprezado.
9. Sublinhe-se contudo que a referida “ligação genética”, face
ao que a lei dispõe nas disposições já invocadas, que se reconhece existir, é
entre o procedimento concursal que ficou deserto e o procedimento por ajuste
directo que, na sua sequência, é aberto, com os fundamentos e as condições
acima referidos no nº 7.
10. A posição
defendida na petição de recurso de que tal “ligação genética” abrange
todos os procedimentos por ajuste directo que, no prazo de três anos, possam
ser desencadeados, após concurso deserto, não é legalmente defensável,
precisamente porque no nº 6 do artigo 24º se exige, como já se viu, que a
decisão de escolha do ajuste directo tem de ser tomada no prazo de 6 meses.
Isto é: a lei é clara na determinação dos limites temporais em que, na
sequência de concurso deserto, se pode fazer apelo a procedimentos não
concorrenciais.
11. O facto de no início do nº1 do artigo 27º se dizer “[s]em
prejuízo do disposto no artigo 24º” em nada altera a posição que se acabou
de defender. Relembre-se que o artigo 24º se aplica aos procedimentos de
formação de quaisquer tipos de contratos por ajuste directo. E o artigo 27º
consagra as possibilidades de recurso a esse tipo de procedimento para os casos
de formação de contratos de aquisição de serviços. Daqui resulta, com base
naquele inciso inicial do artigo 27º, que na formação de contratos de aquisição
de serviços se pode apelar a ajuste directo nos casos previstos no artigo 24º e
também nos casos previstos no artigo 27º. E só resulta isso. Não resulta que,
sendo celebrado um primeiro contrato ao abrigo da alínea a) do nº1 do artigo
24º, se possam celebrar, ao abrigo do nº 1 do artigo 27º, no prazo de três anos,
novos contratos por ajuste directo, por aquele primeiro ter tido aquele
fundamento legal e se considerar que todos estão “na sequência” de um concurso
deserto.
12. Diga-se igualmente que só a interpretação que acaba de ser
feita de circunscrever o recurso a ajuste directo previsto na alínea a) do nº 1
do artigo 24º aos limites temporais fixados no nº 6 e de rejeição da
possibilidade de sistemática abertura de procedimentos não concorrenciais,
durante três anos “à sombra” de um concurso que ficou deserto, é conforme com
os princípios que devem nortear a contratação pública.
Ocorrendo um concurso deserto, a prossecução dos interesses
públicos justifica que, num horizonte temporal de curto prazo, se faça recurso
a procedimentos não concorrenciais. Mas satisfeitas de imediato as necessidades
públicas, para a satisfação continuada das mesmas ou de novas necessidades,
deve a Administração recorrer de novo a procedimentos concorrenciais, assim
observando os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência,
expressamente consagrados no nº4 do artigo 1º do CCP e outros princípios
aplicáveis, nos termos da Constituição e da lei (designadamente do CPA), a toda
actividade administrativa pública, como os da prossecução do interesse público,
legalidade, proporcionalidade e imparcialidade.
13. Diga-se ainda que a presente interpretação é conforme ao que
se dispõe nas directivas comunitárias em matéria de contratação pública,
transpostas para a ordem jurídica interna pelo CCP. De facto, a Directiva
2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de Março de 20049, não só
consagra disciplina idêntica à constante no direito nacional, nesta matéria,
como impõe autonomia interpretativa às soluções consagradas nos artigos 24º e
27º do CCP e impede a sua conjugação como é defendida na petição de recurso.
De facto, resulta claramente do artigo 31º da Directiva e, em
especial, da alínea a) do nº 1 e da alínea b) do nº 4, que a celebração de
contrato por procedimento não concursal na sequência de concurso que tenha
ficado deserto é uma situação completamente autónoma da celebração de contrato,
também por procedimento não concursal, para a prestação de serviços similares.
São previsões autónomas, entre elas não podendo estabelecer-se qualquer
relação, nem constando no texto qualquer ressalva ou elemento que permita
accionar as duas soluções de forma sequencial, como se defende na petição de
recurso.
14. Em conclusão: ao contrário do defendido na petição de recurso
a expressão “na sequência de concurso público ou de concurso limitado com
prévia qualificação” não pode ser interpretada como abrangendo os casos de
contratos que, num prazo de 3 anos, venham a ser celebrados na sequência de um
primeiro celebrado ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 24º do CCP.
Com o até agora exposto, fica pois analisada a matéria
constante das conclusões da petição de recurso, acima transcritas nas alíneas
a) a d) e g) do nº 3, concluindo-se que o acórdão recorrido não violou o
disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 27° do CCP.
15. Mas a petição de recurso impugna ainda a decisão recorrida
noutro aspecto: considera que foi violado o disposto na alínea a) do nº 1 do
artigo 24º porque a decisão pressupõe que o contrato celebrado ao abrigo do que
se dispõe nesta disposição legal, não pode manter disposições previstas nos
documentos do procedimento concursal que ficou deserto, em particular a
previsão da possibilidade de celebração de contratos futuros ao abrigo do nº1
do artigo 27º.
No entendimento do recorrente, tal matéria não pode deixar de
constar do contrato celebrado, por ajuste directo, ao abrigo de tal disposição
legal, sob pena de se violar a sua parte final, quando exige que o caderno de
encargos relativo ao novo procedimento não pode ser “substancialmente
alterado”. Isto é, se o caderno de encargos do procedimento concursal
previa a possibilidade de celebração de novos contratos ao abrigo do nº1 do
artigo 27º, então, “por ser matéria substancial” também os documentos
procedimentais do ajuste directo e consequente contrato celebrado por ajuste
directo ao abrigo do nº1 do artigo 24º teriam de prever essa possibilidade.
16. Não assiste razão ao recorrente. Por duas simples razões:
a) Deve-se considerar aspecto substancial de um documento
procedimental a previsão de uma mera possibilidade: a de recorrer ao disposto
no nº 1 do artigo 27º? Possibilidade que, naturalmente, pode ser ou não ser
activada e que está exclusivamente dependente da vontade da entidade pública
contratante?
b) Deve tal matéria ser considerada substancial, e portanto
deve ser incluída no contrato celebrado mediante ajuste directo, quando tal
inclusão neste contrato constituiria claramente base para a violação do
disposto expressamente na subalínea ii) da alínea a) do nº 1 do artigo 27º?
As duas perguntas agora formuladas têm naturalmente resposta
negativa e a evidência da resposta dispensa mais fundamentação.
Com o exposto no nº 15 e no nº anterior, fica pois analisada
a matéria constante das conclusões da petição de recurso, acima transcritas nas
alíneas e) e f) do nº 3, concluindo-se que o acórdão recorrido não violou o
disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 24° do CCP.
III – DECISÃO
17. Assim, nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os
Juízes, em plenário da 1ª Secção, em julgar improcedente o recurso, mantendo a
decisão recorrida.
18. São devidos emolumentos nos termos da alínea b) do nº 1 do
artigo 16º do Decreto-Lei nº 66/96, de 31 de Maio, com as alterações
introduzidas pela Lei nº 139/99, de 28 de Agosto, e pela Lei nº 3-B/00, de 4 de
Abril.
Lisboa, 8 de Junho de 2010
Os Juízes Conselheiros,
(João Figueiredo - Relator) (António Santos Carvalho)
(Carlos Morais Antunes)
Fui presente
(Procurador Geral Adjunto)
(Jorge Leal)
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