sexta-feira, 11 de julho de 2014

CONCURSO PÚBLICO. FORNECIMENTO DE BENS. CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO. SUBCRITÉRIOS. PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE. PRINCIPIO DA TRANSPARÊNCIA. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. PRINCÍPIO DA ESTABILIDADE. NULIDADE DE SENTENÇA. CONCESSIONÁRIO.



Proc. Nº 0113/03     Supremo Tribunal Administrativo    2 Abril 2003


 I - Está sujeito ao regime do D-L nº 197/99, incluindo a norma do seu art. 94º, o concurso público lançado pela ANA, S.A., concessionário em regime de exclusivo do serviço aeroportuário de apoio à aviação civil, em cujo programa se determina a aplicação subsidiária desse diploma, assim concretizando a possibilidade, dada pelo diploma legal que transformou aquela empresa, de contratar fornecimentos segundo um regime de direito público (art. 14º, nº 2, do D-L nº 404/98, de 18.12).
II - Quer nos termos daquele artigo 94º, quer em decorrência dos princípios da imparcialidade e transparência, igualdade, concorrência e estabilidade do concurso, aplicáveis a toda a espécie de procedimentos adjudicatórios, a adição de sub-critérios ou sub-factores de avaliação pelo júri está sujeita ao limite temporal da abertura das propostas.
III - Constitui criação de sub-critérios o desdobramento de critérios ou sub-critérios fixados no programa de concurso em "campos" que integram subunidades estanques, com atribuição de uma pontuação autónoma e separada, contando para a classificação final.
IV - Na maior parte dos casos, o tribunal não poderá, sem fazer administração activa e com isso violar a separação dos poderes, concluir que sem a intervenção dos sub-critérios ilegais a posição do recorrente não seria lesada, e validar com esse fundamento o acto de adjudicação - se é que a violação se não consuma, e desencadeia logo o seu efeito invalidante, com o mero perigo da postergação daqueles valores, independentemente do resultado lesivo que produza; além disso, é ao recorrido que incumbe a demonstração desse facto impeditivo ou extintivo do direito invocado pelo recorrente - art. 342º, nº 1, do C. Civil.

Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, 3ª Subsecção:
- I -
O CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA ANA – AEROPORTOS DE PORTUGAL, S.A., recorre da sentença do T.A.C. de Lisboa que, no recurso contencioso interposto por A..., LDA, anulou a deliberação do ora recorrente, de 10.1.02, que adjudicou a ..., S.A., o fornecimento de monitores do sistema de informação de voo para o aeroporto de Lisboa, objecto do concurso público nº 1/ALS/2001.
Fundamento da anulação foi a violação do preceituado no art. 94º do Dec-Lei nº 197/99, de 8.6, e bem assim os princípios da estabilidade do concurso e dos critérios de adjudicação.
Nas suas alegações, o recorrente enuncia as seguintes conclusões:
“a) a sentença recorrida, ao dar como assente a aplicabilidade ao concurso sub iudice do disposto no Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho, nomeadamente das regras constantes dos respectivos art.s 8º e 94º, enferma de erro de direito;
b) em primeiro lugar, porque a ANA não se encontra subordinada aos regimes financeiro e administrativo de formação dos contratos previstos no Decreto-Lei nº 197/99 (entre outros, o de fornecimento de bens), porquanto não se subsume em nenhum dos tipos de entidades descritas nos arts. 2º e 3º desse diploma, nos quais se delimita subjectivamente o âmbito obrigatório da sua aplicação;
c) por outro lado, nem sequer pode ela submeter-se directamente aos regimes constantes desse diploma legal, dado que esses regimes são indisponíveis tanto para os entes que lhes estão sujeitos, como para todos os que deles estão excluídos: as leis administrativas e financeiras deste género são de sujeito obrigatório;
d) assente que está que a ANA não se encontra sujeita na matéria da contratação de fornecimentos de bens, ao regime imperativo do Decreto-Lei nº 197/99, necessariamente se terá de concluir que ela goza, em geral, de um poder de auto-conformação jurídica dos procedimentos adjudicatórios concursais de direito público que promova, podendo, portanto, afastar-se dos diplomas “nominados” e tornar esses procedimentos muito mais céleres, maleáveis, e menos burocráticos, com o limite, claro, de dever respeitar os princípios gerais do direito adjudicatório;
e) o que, aliás, é reconhecido na sentença a quo, ao admitir-se que os procedimentos de direito público por ela promovidos podem comportar desvios, desde que os mesmos estejam expressamente previstos nos programas dos respectivos concursos;
f) e foi isso precisamente – como se demonstrou no nº 10 destas alegações – que a ANA fez no procedimento sub iudice, onde, entre outras especialidades, estabeleceu, no Programa, que o concurso decorreria perante duas comissões, respectivamente a Comissão de Abertura e a Comissão de Apreciação das Propostas (cf. art. 16º, nº 1 do Programa) ;
g) do esquema de funcionamento estabelecido no Programa do Concurso decorre manifestamente que a Comissão de Apreciação das Propostas apenas entraria em exercício de funções após o encerramento do acto público do concurso (e depois de resolvidas todas as eventuais questões relativas à admissão de concorrentes e respectivas propostas) ;
h) ou seja, a ANA, no âmbito dos seus poderes de auto-conformação do procedimento, estabeleceu, nesta matéria, um regime de direito público, mas diferente do previsto no Decreto-Lei nº 197/99 – e que arreda a possibilidade de aplicação aqui do art. 94º, nº 1 desse diploma legal;
i) Não havia, portanto, que convocar subsidiariamente – nos termos do disposto no art. 25º do Programa – o regime do Decreto-Lei nº 197/99;
j) A sentença recorrida, ao ignorar tudo o que ficou dito – e que já se deixara invocado nas alegações de recurso contencioso – padece, portanto, de nulidade por omissão de
pronúncia, nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do art. 668º do Código de Processo Civil;
k) Além de que, ao considerar aplicáveis ao procedimento sub iudice as regras dos art.s 94º e 8º do Decreto-Lei nº 197/99, padece também de erro de direito;
l) Em novo erro de direito incorreu a sentença recorrida ao considerar que a deliberação recorrida violou o disposto no art. 94º, nº 1 do Decreto-Lei nº 197/99;
m) Desde logo, porque – como ficou demonstrado nos nºs 7, 8, 17 e 18 destas alegações – a ANA não se encontra sujeita, no procedimento sub iudice, ao regime do Decreto-Lei nº 197/99, nomeadamente à regra do respectivo art. 94º, nº 1;
n) Por outro lado, juridicamente relevante e decisivo nesta matéria, é que os subfactores ou “campos autónomos” tenham sido fixados – como efectivamente sucedeu – antes de a Comissão proceder à análise das propostas, como ficou demonstrado no nº 19 destas alegações;
o) Assim, com essa actuação da Comissão não podem ter sido violado – contrariamente ao que implicitamente se considerou na decisão a quo – os princípios basilares dos procedimentos concursais como os da igualdade, da boa fé e da justiça, da imparcialidade e da transparência;
p) Não houve violação do princípio da igualdade, uma vez que os subfactores criados eram iguais para todos, serviam (ou não serviam) por igual a todos os concorrentes, e todos eles os conheceram ao mesmo tempo;
q) Como também não houve, com essa actuação da Comissão, violação dos princípios da boa fé e da justiça – como se demonstrou no nº 22 destas alegações;
r) Nem foi violado o princípio da imparcialidade, como também ficou demonstrado no nº 23 destas alegações para onde se remete;
s) Por último, ficou demonstrado (nº 24 destas alegações) que a actuação da Comissão também não consubstanciou uma violação do princípio da transparência;
t) Demonstrou-se também (no nº 25 destas alegações) que – contrariamente ao que parece vir implícito na sentença recorrida –, mesmo no regime do Decreto-Lei nº 197/99, só há dever de comunicação dos subfactores estabelecidos pela Comissão, no caso de os concorrentes o solicitarem;
u) O que quer dizer que, com a norma do nº 1 do art. 94º do Decreto-Lei nº 197/99, não se pretendeu dar a conhecer aos concorrentes os subfactores eventualmente fixados pela
Comissão, para efeitos de melhor elaboração das respectivas propostas.;
v) Quando, porém, se admite – como no caso sub judice – que os subfactores sejam adoptados após a apresentação das propostas, para utilização pela comissão, nesse caso, aos concorrentes já só interessa conhece-los quando lhes for dada audiência prévia para se pronunciarem sobre o relatório elaborado pela comissão de apreciação das propostas;
w) O que significa que, dando a conhecer os referidos subfactores aos concorrentes no momento em que submeteu a sua audiência o relatório de apreciação e classificação de propostas nele baseado, a Comissão cumpriu integralmente os deveres de publicidade a que estava obrigada, permitindo-lhes verificar, quando isso era procedimentalmente devido, como tinha sido organizada a análise, comparação e classificação das suas propostas;
x) Por outro lado, constitui jurisprudência firmada deste Alto Tribunal a de que qualquer violação de lei não funciona em abstracto, ou seja, só releva quando da sua concreta verificação derivam efeitos lesivos dos fins a tutelar – nesse sentido, ver os Acórdãos do STA de 7/12/1994 (rec. nº 32.996) e de 30/11/1995 (in ADSTA nº 418, pág. 1123);
y) Quer isto dizer que a sentença recorrida, ao dar por procedente a verificação do vício de violação do art. 94º, nº 1 do Decreto-Lei nº 197/99, sem avaliar quais os concretos efeitos lesivos, para ora Recorrida, da citada conduta da Comissão, enferma de novo erro de direito;
z) A sentença recorrida, ao que considerar que, pelo facto de a Comissão ter fixado os subfactores no momento em que o fez, se mostra violado o princípio da estabilidade das regras do concurso e dos critérios de adjudicação padece, também nesta parte, de erro de direito e deve ser revogada;
aa) Em primeiro lugar, porque – como se deixou demonstrado nestas alegações – ela parte de um pressuposto erróneo, de que a imposição do art. 94º do Decreto-Lei nº 197/99 tem subjacente a ideia de que o momento temporal de fixação dos subfactores de apreciação se destina a possibilitar aos concorrentes uma melhor elaboração das suas propostas;
bb) Em segundo lugar, porque não houve na verdade, qualquer alteração das regras fixadas no Programa do presente Concurso;
cc) Além de que a concretização dos critérios de adjudicação – perfeitamente legítima e necessária – foi feita tendo em conta unicamente as características fixadas no Caderno de encargos e respectivos anexos;
dd) Como não houve, obviamente com esta actuação, qualquer alteração dos critérios previamente fixados que se mantiveram inalterados desde a elaboração do regulamento do concurso”.
Enquanto isso, a recorrida contra-alegou, extraindo as conclusões seguintes:
a) Tal como se decidiu na douta sentença recorrida, o DL 197/99 é aplicável ao procedimento de concurso público referido nos presentes autos, embora não o seja necessariamente em bloco, sendo que os desvios eventualmente introduzidos no procedimento concursal objecto do presente processo nunca poderiam implicar a violação dos princípios essenciais do regime da contratação pública, sob pena de se desvirtuar a natureza pública do procedimento de concurso público promovido pela ANA, S.A.
b) A aplicabilidade do DL 197/99 ou, pelo menos, dos princípios fundamentais da contratação pública nele consagrados, é inquestionável face ao decidido no Acórdão desse Venerando Tribunal de 17.07.2002, no qual se decidiu que o acto de adjudicação sub judice, resultante de um procedimento concursal regido por um regime de direito público, tem a natureza de um acto administrativo e, em consequência, a apreciação da respectiva legalidade é da competência dos tribunais administrativos.
c) Os artigos 94º e 8º do DL 197/99 visam garantir o cumprimento de princípios caracterizadores da figura do concurso público, de direito público, como sejam a imparcialidade, isenção, justiça, boa fé, transparência e publicidade da actuação da entidade adjudicante e, nessa medida, terão forçosamente que se aplicar num procedimento de Concurso Público como o que é objecto dos presentes autos, sob pena de se desvirtuar a natureza de direito público do citado procedimento e de se porem em causa os referidos princípios fundamentais.
d) Contrariamente ao invocado pelo recorrente, não existe qualquer incompatibilidade lógica entre a solução adoptada pela ANA, S.A. no sentido de o presente Concurso Público ser acompanhado por duas Comissões – uma de Abertura do e outra de Apreciação das Propostas – e o respeito pelas normas decorrentes dos artigos 94º e 8º do DL 197/99, bem como pelos princípios que essas disposições legais visam acautelar, visto que o que resulta do artigo 94º é a necessidade de a entidade adjudicante proceder à definição de todos os elementos que compõem o critério de adjudicação e suas respectivas ponderações relativas, até ao termo de dois terços do prazo para apresentação de propostas, sendo, para o efeito, perfeitamente irrelevante que a entidade adjudicante seja representada por um Júri único ou por uma Comissão de Apreciação de propostas.
e) Não resulta de qualquer das disposições do Programa do Concurso que a Comissão de Apreciação de Propostas só entraria em funções após o acto público do Concurso, sendo certo que a ANA, S.A. tinha ao seu dispor outros meios de acautelar o cumprimento do que decorre das atrás citadas normas, como
(i) promover que essa Comissão reunisse antes de terminado o período de dois terços do prazo para apresentação de propostas e nessa sede definisse todos os elementos do critério de adjudicação alegadamente em falta, ou
(ii) fixar todos os elementos relevantes para apreciação da satisfação do critério de adjudicação, logo no Programa do Concurso, à luz do que está previsto no DL 59/99 (diploma onde a ANA, S.A parece ter ido inspirar-se para prever o acompanhamento do Concurso público por aquelas duas Comissões), assim se protegendo a posição e legítimas expectativas dos concorrentes, bem como os princípios caracterizadores da figura do concurso público de que os artigos 94º e 8º são corolários.
f) O artigo 94º do DL 197/99 constitui um corolário dos princípios fundamentais a respeitar em todos os procedimentos de contratação pública de direito público, pelo que não poderia ser adoptada no procedimento em causa, sob pena de ilegalidade, qualquer solução que contrariasse os vectores essenciais daquela norma.
g) Em todo o caso, verifica-se que, contrariamente ao invocado pelo recorrente, não existe no caso sub judice qualquer previsão no Programa do Concurso que consagre um desvio à aplicação do artigo 94º do DL 197/99 (vide a diferença que decorre claramente do disposto no n.º 2 em face do disposto nos nº.s 4 e 5 do artigo 19º do Programa do Concurso), pelo que não se pode, de forma alguma, aceitar que no presente procedimento de Concurso Público seria admissível que a densificação dos sub-critérios em campos e a atribuição de ponderações relativas fossem feitas após a apresentação das propostas.
h) Nestes termos, a douta sentença recorrida entendeu, e bem, que, no presente procedimento concursal não foi afastada a aplicação dos artigos 94º e 8º do DL 197/99 e que os mesmos não podiam deixar de se considerar plenamente aplicáveis ao referido Concurso Público, sendo assim totalmente improcedente o invocado nos pontos 3 a 14 das alegações do recorrente e nas respectivas conclusões a) a k).
i) De referir ainda que a tese da alegada omissão de pronúncia é totalmente infundamentada e improcedente, pois o douto Tribunal recorrido apenas estava vinculado a conhecer dos vícios do acto recorrido invocados pela ora recorrida, não tendo de se pronunciar sobre todos os argumentos de defesa alegados pela entidade recorrida, ora recorrente.
j) Apesar de, à partida, os critérios e factores de avaliação das propostas deverem constar do Programa do Concurso, admitiu a douta sentença recorrida a possibilidade de o Júri/a Comissão de Apreciação de propostas vir fixar subfactores, micro-critérios e respectivas ponderações relativas, desde que fossem respeitados os limites temporais e as exigências de publicidade decorrentes do artigo 94º do DL 197/99.
k) Para o efeito, o que é relevante não é, ao contrário do que entende o recorrente, que os “campos” autónomos e as grelhas de pontuação numérica ou percentual fossem eventualmente definidos antes de a Comissão de Apreciação de Propostas iniciar a análise efectiva das propostas, mas sim que essa densificação de factores e sub-critérios e a atribuição de ponderações relativas aos vários elementos que compõem os factores de avaliação fosse realizada antes do decurso do prazo para apresentação de propostas (e da sua consequente abertura), desde logo porque, como decorre da Jurisprudência desse Venerando Tribunal e da Doutrina mais autorizada na matéria, só assim seriam salvaguardados os princípios da igualdade, transparência, justiça e imparcialidade.
1) Além disso, a invocação de que aquela densificação foi feita antes da efectiva análise das propostas só seria salvaguardada se essa densificação de factores e atribuição de ponderações relativas estivesse consignada em acta elaborada em data anterior à abertura das propostas, o que, como se pode confirmar pela análise do processo instrutor do Concurso Público, não ocorreu.
m) Nesta medida, além de o acto recorrido violar o disposto no n.º 1 do artigo 94º do DL 197/99, como bem se decide na douta sentença recorrida “(...) não se vê como possam salvaguardados os princípios que a norma visa proteger”, sendo antes que “com essa prática [refere-se à densificação dos sub-critérios constantes do Programa do Concurso em “campos”, à atribuição de ponderações a esses “campos", bem como aos referidos sub-critérios, em momento posterior à apresentação e abertura das propostas] violaram-se directamente esses princípios [refere-se aos princípios que aquela norma do artigo 94º visa acautelar, designadamente a igualdade, a transparência, a justiça e a imparcialidade]”, como decorre igualmente dos pontos 10 a 13 das presentes alegações.
n) Acresce que, a citada norma do artigo 94º do DL 197/99 não visa apenas assegurar a insuspeição e isenção da entidade adjudicante na apreciação das propostas, mas também garantir a divulgação desses elementos que serão tidos em conta nessa apreciação, em tempo que seja útil para os concorrentes poderem conformar as suas propostas com essas informação, só assim se compreendendo, designadamente, a similitude entre o regimes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 94 e o que resulta do n.º 2 do artigo 93º, para a prestação de esclarecimentos para boa compreensão das peças concursais, ambos do DL 197/99.
o) E se é verdade que à luz do n.º 2 do artigo 94º do DL 197/99, a entidade adjudicante não está obrigada a publicitar a todos os concorrentes a densificação de factores e atribuição de ponderações (percentuais ou numéricas) a esses elementos que compõem o critério de adjudicação, é exigível, pelo menos, que disponibilize, antes do termo do prazo para apresentação de propostas, uma cópia da acta que contém esses elementos aos concorrentes que a requeiram, assim se garantindo que os concorrentes que o pretendam fazer, possam ainda conformar as suas propostas com essas informações, pelo que a argumentação apresentada pelo recorrente em nada contradiz o entendimento de que a garantia da publicidade dos elementos com base nos quais vai ser apreciada a proposta é um dos objectivos que o artigo 94º do DL 197/99 visa acautelar.
p) Ao contrário do que alega o recorrente e como vem referido na anterior conclusão g), o
Programa do Concurso do procedimento pré-contratual promovido pela ANA, S.A. não contém qualquer disposição que preveja que os sub-critérios aí previstos seriam decompostos em "campos” e que lhes seriam atribuídas ponderações percentuais ou numéricas após a apresentação das propostas (a qual seria inclusive de duvidosa legalidade), pelo que a divulgação aos concorrentes desses elementos apenas em fase de audiência prévia, viola o n.º 2 do artigo 94º do DL 197/99 e o princípio da publicidade das regras concursais e critérios de adjudicação que aquela disposição visa acautelar.
q) Contra o exposto, não se invoque que a sentença recorrida não podia decidir pela anulação do acto impugnado nos autos sem avaliar quais os concretos efeitos lesivos, para a ora recorrida, da conduta da Comissão de Análise de propostas, visto que, como tem sido defendido pela Jurisprudência desse Venerando Tribunal e pela Doutrina mais autorizada na matéria, não tem que existir qualquer lesão efectiva dos interesses da ora recorrida, mas tão somente uma lesão potencial.
r) A douta decisão recorrida entendeu, e bem, que a densificação de sub-critérios e definição de ponderações relativas que a ANA, S.A. veio a estabelecer seria, eventualmente, admissível, desde que a ANA, S.A. tivesse respeitado não só os limites materiais (não subvertendo os critérios inicialmente definidos), mas também os limites temporais e as exigências de publicidade (decorrentes do artigo 94º do DL 197/99), visto que só assim “(...) se poderá considerar não estar beliscado o princípio da estabilidade das regras do concurso e dos critérios de adjudicação".

s) A douta sentença recorrida não merece assim qualquer reparo ou crítica na parte em que decidiu que o acto recorrido violou o artigo 94º do DL 197/99 e os princípios fundamentais que esta disposição visa proteger, designadamente o princípio da publicidade, sendo assim improcedente o invocado nos pontos 15 a 29 das alegações do recorrente, bem como nas respectivas conclusões 1) a y).

t) Não se respeitando esses limites temporais e, entendendo que tal prática não era expectável pelos concorrentes, sendo esse carácter inesperado"(...) mais manifesta[o] no que se refere à ponderação relativa dos sub-critérios", a douta decisão recorrida decidiu, e bem, que o acto impugnado nos presentes autos violou o princípio da estabilidade das regras concursais e dos critérios de adjudicação.

u) De facto, face a tudo o que vem exposto nos pontos 22. e 23. destas alegações, cumpre concluir que, pelo menos, a atribuição de pontuações estanques aos diversos sub-critérios e aos mencionados “campos” ou subfactores em que aqueles foram decompostos, com alteração do modo de classificação e de apreciação da satisfação dos elementos que compõem o critério de adjudicação, significa, evidentemente, uma alteração dos critérios de adjudicação e dos factores de avaliação que constam das peças patenteadas a concurso, feita em momento posterior à apresentação das propostas, a qual implica, necessariamente, uma potencial lesão dos interesses daqueles que não puderam conformar as suas propostas em função dessa informação.
v) Nestes termos, não poderá proceder o exposto nas conclusões bb) e dd) das alegações do recorrente e, em consequência, se tem por assente que, a douta decisão recorrida não merece qualquer reparo ou crítica na parte em que decidiu que o acto recorrido violou o citado princípio de estabilidade consagrado no n.º 1 do artigo 14º do DL 197/99, e que sempre seria aplicável ao citado procedimento concursal em virtude da inerência deste princípio ao conceito de concurso público de direito público, improcedendo assim o invocado nos pontos 30 a 35 das alegações do recorrente, bem como nas respectivas conclusões z) a dd)”.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, e da confirmação da sentença.
O processo recebeu os vistos legais, cumprindo agora decidir.
- II -

A sentença considerou provados os seguintes factos:
1.º ) Nos termos do Aviso publicado no Diário da República, nº 143, III série, de 22 de Junho de 2002, foi aberto pela ANA – Aeroportos de Portugal, S.A., o concurso público nº 1/ALS/2001 para o funcionamento de monitores do sistema de informação de voo para o Aeroporto de Lisboa;
2.º) Apresentaram-se a concurso, entre outros, a ora Recorrente e a Recorrida particular ..., Sociedade Electrónica, S.A. – cf. doc. fls. 116 e seguintes;
3.º) Nos termos do n.º 1 do artigo 19.º do Programa do Concurso, a adjudicação seria feita em função dos seguintes factores, por ordem decrescente de importância:
- Preço;
- Valor Técnico;
- Exploração e Manutenção;
- Prazo de Execução do Fornecimento;
4.º) No n.º 2 do artigo 19.º do mesmo Programa estabelecia-se que a ponderação percentual atribuída a estes factores seria definida pelo Conselho de Administração da ANA, S.A.,
5.º) O qual só a tornaria pública com a apresentação do relatório preliminar;
6.º) O artigo 19.º, n.º 4 da referida Proposta determinava que na apreciação do “Valor técnico” das propostas a Comissão de Avaliação de Propostas deveria considerar os seguintes sub-critérios:
- Características técnicas dos equipamentos,
- Funcionalidade dos equipamentos;
- Adequabilidade técnico-funcional dos mesmos;
- Sua capacidade;
- Sua fiabilidade/disponibilidade;
- Compatibilidade da proposta com as normas e recomendações aplicáveis e
- Prazo de garantia proposto;

7.º) O artigo 19.º, n.º 5 da Proposta determinava que na apreciação do factor “Exploração e Manutenção” das propostas a Comissão de Avaliação de Propostas deveria considerar os seguintes sub-critérios:
- Acessibilidade e versatilidade dos equipamentos;
- Custo dos sobressalentes;
- Formação a ser conferida;
- Documentação técnica apresentada em cumprimento do artigo 8.º das cláusulas técnicas do caderno de encargos;
- Equipamento de teste e medida, e
- Ferramentas;
8.º) No dia 8 de Novembro de 2001 a ANA, S.A., através da Comissão de Apreciação das propostas notificou a Recorrente do relatório preliminar – cf. doc. 14 a 63 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
9.º) Esse relatório propunha como primeira classificada a concorrente Lenave, Lda. – cf. mesmo doc.;
10.º) Nesse relatório consta “Na apreciação do factor valor técnico, a Comissão tomou em consideração os aspectos constantes do n. º 4 do artigo 19.º do Programa de Concurso e os sub-factores relativos a este factor, indicados no Anexo 2”- cf. fls. 21;
11 º) E ainda ““Na apreciação do factor exploração e manutenção, a Comissão tomou em consideração os aspectos constantes do n. º 5 do artigo 19. º do Programa de Concurso e os sub-factores relativos a este factor, indicados no Anexo 2” – cf. fls. 21;
12.º) No anexo 2 alguns dos sub-factores referidos em 6.º) quanto ao “valor técnico” foram subdivididos em “campos” aos quais se atribuiu uma pontuação não determinada previamente – cf. fls. 36 a 39 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
13.º) No anexo 2 alguns dos sub-factores referidos em 7.º) quanto à “Exploração e Manutenção” foram subdivididos em “campos” aos quais se atribuiu uma pontuação não determinada previamente – cf. fls. 40 e 41 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
14.º) Apenas com a notificação de 8 de Novembro de 2001 ficou a Recorrente a conhecer da ponderação atribuída aos sub-critérios referidos nos números 4 e 5 do Artigo 19.º do Programa do Concurso;
15.º) A Recorrente apresentou, em sede de audiência prévia, resposta escrita na qual acusava, entre outros aspectos, da criação de “campos autónomos” para os sub-factores, bem como pontuações para esses campos e sub-factores, criando assim incerteza no que respeita à forma como seriam avaliadas e ponderadas as propostas – provado por acordo e teor do doc. fls. 65 a 71;
16.º) Pronunciou-se a Comissão de Apreciação de Propostas nos seguintes termos:
“(...) refira-se que a Comissão, previamente à análise das Propostas, limitou-se a concretizar os factores e subfactores previstos no Programa de Concurso, enumerados de forma genérica. Sendo que tal concretização não subverteu os factores e subfactores em causa, nem a respectiva ponderação, correspondendo os mesmos às principais características exigidas nas Cláusulas Técnicas e, por isso, perfeitamente expectáveis por todos os concorrentes”- cf. fls. 68 do mesmo doc. ;
17.º) A Comissão considerou, porém, “procedentes os comentários relativos à classificação do factor preço” e, em consequência, elaborou novo relatório preliminar – cf. doc. fls. 66 a 110;
18.º) Ordenando provisoriamente a concorrente ..., S.A. em l.º lugar – cf. fls. 72 e 73;
19.º) Nesse Relatório consta “Na apreciação do factor valor técnico, a Comissão tomou em consideração os aspectos constantes do n. º 4 do artigo 19.º do Programa de Concurso e os subfactores relativos a este factor, indicados no Anexo 2”- cf. fls. 78;
20.º) Tendo sido atribuída à concorrente ... 901 pontos e à Recorrente 955 (p. base) e 946 (p. alt.) – cf. fls. 78;
21.º) E ainda “Na apreciação do factor exploração e manutenção, a Comissão tomou em consideração os aspectos constantes do n. º 5 do artigo 19. º do Programa de Concurso e os subfactores relativos a este factor, indicados no Anexo 2” – cf. fls. 78;
22.º) Tendo sido atribuída à concorrente ... 985 pontos e à Recorrente (P. base) e 901 (P. alt.) – cf. fls. 79;
23.º) No anexo 2 alguns dos subfactores referidos em 6.º) quanto ao “valor técnico” foram subdivididos em “campos” aos quais se atribuiu uma pontuação não determinada previamente – cf. fls. 83 a 85 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
24.º) No anexo 2 alguns dos subfactores referidos em 7.º) quanto à “Exploração e Manutenção” foram subdivididos em “campos” aos quais se atribuiu uma pontuação não determinada previamente – cf. fls. 87 e 88 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
25.º) Aos 30 de Novembro de 2001, em sede de audiência prévia, a recorrente pronunciou-se e novamente acusava, entre outros aspectos, da criação de “campos autónomos” para os subfactores, bem como pontuações para esses campos e subfactores, criando assim incerteza no que respeita à forma como seriam avaliadas e ponderadas as propostas – provado por acordo e teor do doc. fls. 65 a 71;
26.º) No relatório final de apreciação de propostas pronunciou-se a Comissão nos seguintes termos:
“A) Factores de Apreciação das Propostas:
A Comissão não deixando de ter em conta os argumentos aduzidos, não pode, no entanto, igualmente deixar de referir o seguinte:
1) a muito criticada “criação de sub-factores, campos e respectiva ponderação – cuja subjugação ao correspondente factor nunca foi questionada – é que tornou possível ao concorrente n.º 7 constatar com rigor e exactidão as pontuações atribuídas às diversas propostas; cf. doc. fls. 151 a 156 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
27.º) E propôs, ‘face ao (...) exposto, bem como ao Relatório Anexo, que faz parte integrante deste, (...) que a adjudicação do fornecimento seja efectuada à Proposta do Concorrente n. º 8 – ..., S.A., pelo valor de 76.340.440$00, acrescido de IVA, por a considerar a mais vantajosa, atendendo aos factores de apreciação estabelecidos no Programa de Concurso” – cf. fls. 156;
28.º) No relatório anexo referido na proposta de decisão pode ler-se, no que se refere ao “valor Técnico” : “Na apreciação do factor Valor Técnico, a Comissão tomou em consideração os aspectos constantes do n. º 4 do Art. º 19. º do Programa de Concurso” – cf. fls. 119;
29.º) E atribuiu à concorrente ... a pontuação de 901 e à Recorrente 955 (p. base) e 946 (p. alt.) - cf. fls. 119;
30.º) E no que se refere ao factor “Exploração e Manutenção”: “Na apreciação do factor Exploração e Manutenção, a Comissão tomou em consideração os aspectos constantes do n. º 5 do Art. º 19. º do Programa de Concurso” – cf. fls. 120;
31.º) E atribuiu à concorrente ... a pontuação de 985 e à Recorrente 921 (P. base) e 901 (P. alt.) – cf. fls. 120;
32.º) No relatório final não constam anexos equivalentes aos referidos em 12.º), 13.º) e 23.º) e 24.º);
33.º) Mantendo-se no relatório final a pontuação atribuída a todos os concorrentes pela Comissão no 2.º relatório preliminar, no que respeita aos factores “Valor técnico” e “Exploração e manutenção” – cf. 78, 79, 119 e 120;
34.º) O Conselho de Administração da ANA, S.A. deliberou, em 10 de Janeiro de 2002, “tendo em conta o Relatório Final da Comissão de Apreciação de Propostas” aprovar a adjudicação nos termos propostos – cf. doc. fls. 113;
35.º) Aos 21 de Janeiro de 2002 a Recorrente foi notificada pela ANA, S.A. nos seguintes termos: (...) a proposta apresentada pelo concorrente ..., ...S.A., com o valor de 380.784,50 euros (...) foi seleccionada com vista à adjudicação do fornecimento em epígrafe, em virtude de ter sido a proposta mais vantajosa para a ANA, S.A., atento o estabelecido no respectivo Programa de Concurso. (...) - cf. doc. fls. 158;
36.º) Perante esta notificação a Recorrente estabeleceu diversos contactos telefónicos com vista a consultar o processo de concurso – provado por acordo;
37.º) Tendo acabado por dirigir um requerimento nesse sentido à Direcção de Serviços Jurídicos e do Contencioso da ANA, S.A. a 23 de Janeiro de 2002 – cf. doc. fls. 160;
38.º) Em resposta a tal requerimento informou a ANA, S.A. que o processo poderia ser consultado no dia 31 de Janeiro de 2002 entre as 11h00 e as 12h00 – cf. doc. fls. 163;
39.º) Apenas através da consulta do processo a Recorrente teve conhecimento da data do acto de adjudicação, seu autor, respostas da Comissão de Avaliação aos argumentos aduzidos pela Recorrente em sede de Segunda audiência prévia e fundamentos da decisão ora impugnada – provado por acordo.
40.º) O artigo 25.º do programa do concurso tem a seguinte redacção:
“Em tudo o omisso no presente programa do concurso, aplicar-se-á o disposto no Decreto-Lei n. º 197/99, de 8 de Junho”.
- III-
Em recurso contencioso interposto pela ora recorrida, a sentença impugnada anulou, por violação de lei, o acto de adjudicação dum concurso para o fornecimento de monitores para o sistema de informação de voo no Aeroporto de Lisboa, adjudicação essa realizada a favor doutra empresa.
Em síntese, a sentença considerou que esse acto tinha violado o disposto no art. 94º do Dec-Lei nº 197/99, de 8.6, e bem assim os princípios da estabilidade do concurso e dos critérios de adjudicação.
A recorrente defende, essencialmente, que o concurso não estava sujeito, em bloco, ao regime do Dec-Lei nº 197/99, e que, de qualquer modo, aquele preceito não lhe era aplicável. A admitir-se o contrário, nem o art. 94º nem tais princípios teriam sido violados. Todavia, mesmo que o tivessem sido, faltaria demonstrar que dessa violação resultaram concretos efeitos lesivos para a ora recorrida.
Começa, no entanto, por suscitar a questão da nulidade da sentença por omissão de pronúncia (al. d) do nº 1 do art. 668º do C.P.C.), em virtude de ter ignorado tudo quanto por ela fora anteriormente dito acerca da inaplicabilidade das normas do referido Dec-Lei.
Esta arguição é inconsistente. A al. d) do art. 668º do C.P.C., em conjugação com a regra do art. 660º, nº 2, vincula o juiz a resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, mas não o obriga a debater todos os argumentos ou raciocínios que elas esgrimam no processo. Ora, o juiz a quo pronunciou-se efectivamente sobre a matéria dos vícios do acto impugnado, e abordou também, com bastante detalhe, a problemática da aplicação ao concurso do Dec-Lei nº 197/99.
A sentença não enferma, pois, de nulidade.
A questão da regulamentação a que o presente concurso estava sujeito acha-se manifestamente conexionada com a da competência do tribunal administrativo para conhecer do presente recurso contencioso, a qual começou por conhecer uma resposta negativa por parte do T.A.C., e foi subsequentemente tratada e resolvida de modo diverso no Acórdão deste S.T.A. de fls. 297.
Nesse acórdão, o S.T.A. entendeu que, apesar de a ora recorrente ser um ente de direito privado, concessionário do serviço do serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil, resulta de vários elementos indiciários que a mesma optou implicitamente por submeter o concurso a um regime de direito público (como lhe era permitido pelo art. 14º, nº 2, do D-L nº 404/98, de 18.12), e daí que o acto de adjudicação assuma a natureza de verdadeiro acto administrativo, sindicável nos tribunais administrativos.
É o seguinte o sumário desse aresto:
I. Nos termos do artº 12º do DL nº 404/98, de 18/12, foi atribuída à ANA SA a concessão de serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil, cabendo-lhe prerrogativas de autoridade para assegurar a prossecução dos fins estatutários e legais neste domínio (arts. 13º e 14º)
II. A contratação de fornecimentos poderá ser efectuada pela ANA SA, segundo um regime de direito público, sempre que o justifiquem a sua dimensão, preço ou importância (artº 14º, nº 2).
III. Tendo a ANA SA aberto concurso público de fornecimento, assim expressamente designado, em que seguiu os trâmites previstos no DL nº 197/98, de 8/6, que estabelece o regime jurídico de realização de despesas públicas e da contratação de fornecimentos, designadamente quanto ao programa, acto público, apreciação das propostas, remetendo expressamente para o regime do citado diploma "em tudo o omisso", há que concluir, tendo em conta toda a ambiência do concurso que se quis sujeitá-lo a um regime de direito público.
IV. Assim sendo, os tribunais administrativos são materialmente competentes para impugnar o acto de adjudicação desse contrato.
É certo que não se pode afirmar que este acórdão faz caso julgado acerca da submissão do concurso às normas do citado Dec-Lei, vinculando o juiz a uma decisão nesse sentido. A decisão do Supremo tem por alcance a competência material do tribunal administrativo e, como diz Miguel Teixeira de Sousa, “a fundamentação jurídica da decisão não se inclui, em princípio, no valor de caso julgado da decisão, pelo que os juízos sobre a validade, interpretação e aplicação do direito não se integram no caso julgado” – in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 1997, p. 583, citado no recente Ac. deste S.T.A de 26.3.03, proc.º nº 720/02.
A verdade, porém, é que, tendo concluído que o regime aplicável ao concurso era de direito público, com base, entre outros, nos argumentos de que o art. 25º do Programa de Concurso mandava aplicar subsidiariamente o disposto no D-L nº 197/99, e de que o procedimento de concurso observou, em concreto, “os trâmites e requisitos próprios do regime de direito público constante do DL nº 197/99, de 8/6”, o referido acórdão se inclinou fortemente para a solução dessa aplicabilidade.
E diga-se desde já que muito bem.
Efectivamente, apesar da personalidade jurídica da recorrente ser de direito privado, trata-se duma empresa concessionária de serviço público, em regime de exclusivo, o que implica a outorga de prerrogativas de autoridade pública, e bem assim a imposição de certos deveres e sujeições especiais. A figura do concessionário enquadra-se na categoria doutrinal das chamadas sociedades de interesse colectivo (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2ª edição, p. 560). Admite-se, aliás, que, em certos casos, ao concessionário é dado praticar actos administrativos, sujeitos à fiscalização contenciosa, e é essa possibilidade que explica a existência do preceito da al. d) do art. 51º do ETAF. Especificamente no que à ANA, S.A. concerne, o art. 15º do Dec-Lei nº 404/98 prevê expressamente que compete ao respectivo Conselho de administração “praticar todos os actos administrativos definitivos e executórios cuja prática vise a prossecução do serviço público concedido, designadamente aqueles que se revelem necessários ao exercício dos poderes de autoridade conferidos à ANA, S.A.”. Pelo mesmo artigo, confia-se aos tribunais administrativos o julgamento os recursos “dos actos dos seus órgãos que se encontrem sujeitos a um regime de direito público”, e bem assim o das acções sobre contratos de direito público celebrados pela sociedade e sobre responsabilidade por actos de gestão pública.
Por outro lado, a matriz legal organizativa da recorrente não repele a organização de concursos para obtenção de fornecimentos segundo um regime de direito público – antes a favorece.
De facto, o art. 14º, nº 2, do Dec-Lei nº 404/98, de 18.12, que transformou a ANA, EP em sociedade anónima prescreveu que “a contratação de fornecimentos poderá ser efectivada pela ANA, S.A., segundo um regime de direito público, sempre que se justifiquem a sua dimensão, preço ou importância”. De resto, idêntica regra constava já do anterior Dec-Lei nº 246/79, de 25.7 (art. 2º, nº 3).
Ora, se bem que não se comprove a existência de nenhuma resolução específica dos órgãos da ANA a optar pelo regime do Dec-Lei nº 187/99, o Programa do Concurso, que é a sua matriz regulamentar especial e dimana do seu seio, convocou as normas desse diploma a título de “legislação aplicável” – epígrafe do art. 25º. Neste artigo pode ler-se o seguinte:
Artigo 25º
Em tudo o omisso no presente programa do concurso, aplicar-se-à o disposto no Decreto-Lei nº 187/99, de 8 de Junho.
A chamada deste Decreto-Lei, e não doutro diploma regulador de outros procedimentos adjudicatórios de direito público, como por exemplo o Dec-Lei nº 55/99, de 2.3 (empreitadas de obras públicas), faz todo o sentido, pois é efectivamente o D-L nº 197/99 o aplicável à matéria de aquisição de bens e serviços, como era o caso da contratação de fornecimento de monitores para o sistema de informação de voo (v. nº 3., al. a) do Anúncio e 3.1 do Caderno de Encargos). A optar-se por um regime de direito público, o mais lógico seria que o corpo de normas aplicável fosse, realmente, este Decreto-Lei, e não outro qualquer.
Por outro lado, o sentido da remissão feita no programa de Concurso não pode ser outro que não a chamada, em bloco, da generalidade das disposições do diploma que não contrariassem as regras especiais que ele próprio estabelecia.
Não pode, por isso acolher-se a tese da recorrente, para quem o concurso ficou submetido a um regime de direito público, mas diferente do previsto no Dec-Lei nº 197/99, isto porque assistiria à ANA uma liberdade de auto-conformação do procedimento - de que seria manifestação o estabelecimento no Programa de duas comissões de concurso, em vez de uma só. É claro que esta tese serve o objectivo específico da recorrente, de arredar a aplicação do art. 94º, nº 1, - disposição que a sentença aponta como tendo sido violada.
Mas – repete-se – é de todo inaceitável. A opção por duas comissões, em vez de uma, significa apenas que, nesse ponto específico, a ANA preferiu distanciar-se do regime legal. Como mais adiante melhor se irá ver, não se percebe em que é que o acompanhamento do concurso por duas comissões pode bulir com o respeito pelas normas do D-L 197/99, em particular a do art. 94º. Quanto aos poderes de auto-conformação de que dispunha, é precisamente o art. 25º do Programa do Concurso que concretiza e exprime o respectivo exercício: as regras a que o concurso vai obedecer são as que compõem o Programa, integradas pelas do Dec-Lei nº 197/99.
Assente que as normas do referido Dec-Lei se aplicavam subsidiariamente, uma simples leitura do Programa do Concurso revela que nenhuma das suas normas afasta a aplicação, em concreto, do art. 94º e dos princípios relativos à estabilidade do concurso que a sentença julgou violados.
Resta saber se essa violação existiu.
O art. 94º prescreve da seguinte forma:
Art. 94º
1 – Até ao termo do segundo terço do prazo fixado para a entrega das propostas, o júri deve definir a ponderação a aplicar aos diferentes elementos que interfiram na aplicação do critério de adjudicação estabelecido no programa de concurso.
2 – Sem prejuízo do disposto na alínea f) do nº 2 do artigo 99º, a cópia da acta relativa à definição dos critérios a que se refere o número anterior deve ser entregue, no prazo de dois dias, aos interessados que a solicitem.
Contêm-se aqui, em simultâneo, uma norma permissiva e outra de carácter limitativo e proibitivo.
Dele resulta, em primeiro lugar, uma autorização para o júri, nesta fase do procedimento de concurso, “definir a ponderação a aplicar aos diferentes elementos que interfiram na aplicação do critério de adjudicação...”. É que a enunciação dos critérios de adjudicação, propriamente ditos, tem de estar já feita previamente à abertura do procedimento, com explicitação dos vários factores que intervêm. Assim resulta do disposto nos arts. 8º e 55º deste Dec-Lei, aliás em aplicação da Directiva Comunitária nº 92/50/CEE, de 18.6.92, alterada pela Directiva 97/52/CE, de 13.10, do Parlamento e do Conselho – art. 36º, nº 2. O que o art. 94º vem permitir é que, fora do Programa do Concurso, e em fase posterior à respectiva abertura, o júri possa ainda intervir nesta matéria.
Mas, ao mesmo tempo, a lei introduz um limite temporal a essa intervenção – e já se verá a seguir em que é que ela pode consistir – ao estabelecer que só pode ter lugar, no máximo, até dois terços do prazo para a entrega das propostas. Terá de ter lugar necessariamente antes dessa entrega, e com alguma antecedência.
E que espécie de intervenção pode ter o júri ao abrigo deste artigo?
Em primeiro lugar, pode fazer aquilo que com mais imediação deriva da letra da norma – definir o valor ponderado a aplicar a cada um dos elementos, factores ou critérios de adjudicação que constem do Programa do Concurso, mas que este haja silenciado. Ou seja, estabelecer o valor ou peso absoluto e relativo de cada critério, por intermédio de pontos, valores, percentagens, ou outra forma adequada.
Depois, e tal como se tem entendido pacificamente no domínio deste diploma (com as empreitadas e no âmbito do Dec-Lei nº 55/99, de 2.3, as coisas passam-se de modo bem diverso – cf. o art. 66º, nº 1, al. e) e a doutrina do Ac. do S.T.A. de 2.8.00, proc.º nº 46.110), é lícito ao júri, nesta fase, introduzir sub-factores, sub-critérios, ou micro-critérios, os quais, representando uma decomposição ou subdivisão dos critérios standard que constam da lei e do Programa, os desenvolvam ou densifiquem, com a finalidade de facilitar a actividade de comparação e avaliação do mérito das propostas.
A introdução de sub-critérios pelo júri obedece – e nisso estão de acordo a Doutrina e a Jurisprudência – a determinados limites intrínsecos, pois é preciso garantir que dessa maneira não se vão substituir os critérios plasmados no Programa do Concurso por outros critérios ou bitolas de aferição. (v, sobre a matéria, os Acs. de 11.2.99, 2.8.00, e 24.10.02, resp. proc.ºs nºs 44.508, 46.110 e 122/02, e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e Outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa, p. 545/6).
Mas existe também consenso no sentido de que tem de haver, além disso, limites temporais. No caso dos procedimentos para aquisição de bens e serviços, o art. 94º fixa esse limite no segundo terço do prazo para apresentação das candidaturas. Mas, mesmo quando a lei não é tão clara, a Jurisprudência tem entendido que o estabelecimento de sub-critérios em caso algum pode ter lugar depois de o júri ter acesso ao conteúdo das propostas. Efectivamente, o prévio conhecimento das situações a valorizar dificilmente conduziria a uma avaliação objectiva e isenta, prestando-se antes a que a fixação dos subcritérios se afeiçoe aos concorrentes e respectivas propostas. Coisa que em absoluto repugna a um certo número de princípios aplicáveis a toda a actividade administrativa, e em particular aos procedimentos de concurso - princípios da imparcialidade e da transparência, da igualdade, e da boa-fé, da concorrência e da estabilidade do concurso (cf. o art. 266º da CRP, 5º e 6º do CPA, e ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 100 e segs.). Na Jurisprudência deste S.T.A. são numerosos os exemplos de aplicação desta doutrina, podendo citar-se os Acs. de 1.10.92, proc.º nº 28.867, de 3/3/93, em A.D, 380/381, p. 863, de 26.5.94, proc.º nº 1819, de 14.5.96 (AD, 419/1265), 19.12.00, proc.º nº 46.513, 24.5.01, proc.º nº 47.565, 25.7.01, proc.º nº 47.711, 16.1.02, proc.º nº 48.358, 13.2.02, proc.º nº 48.403, 13.12.02, proc.º nº 1603/02 e 20.3.03, proc.º nº 48.079.
A regra do art. 94º representa, em si mesma, o desejo de salvaguarda destes princípios, e incorpora o resultado das exigências da Jurisprudência e da Doutrina. De resto, os receios do legislador nesta matéria levaram-no até a consagrar para as empreitadas a solução, mais radical, de impor a consagração de eventuais sub-critérios no próprio programa do concurso – vide os cits. arts. 66º, nº 1, al. e), do Dec-Lei nº 55/99, de 2.3, e Ac. do S.T.A. de 2.8.00, proc.º nº 46.110),
De qualquer modo, com ou sem art. 94º, com uma comissão de concurso ou com duas, o respeito pelos citados princípios, aplicáveis a todo o procedimento adjudicatório, impede que se considere legal a introdução de sub-critérios em momento posterior à abertura das propostas. E isto, independentemente do momento em que esses sub-critérios sejam dados a conhecer aos concorrentes, pois a necessidade da sua atempada divulgação ou publicitação põe-se depois da exigência da sua tempestiva formulação, prosseguindo já uma finalidade complementar, embora radicando à mesma na mesma ideia de transparência e igualdade de tratamento.
Ora, vem provado que no concurso em questão houve adição de sub-critérios em momento posterior ao limite estabelecido no art. 94º e, em todo o caso, depois da abertura das propostas dos concorrentes.
O Programa do Concurso já fixava, além dos 4 factores de avaliação, sub-factores relativos aos 2º e 3º factores – o valor técnico da proposta e a exploração e manutenção (nºs 4 e 5 do art. 19º).
Sucedeu, porém, que a comissão, já no decurso da sua actividade avaliativa, resolveu desdobrar alguns destes sub-factores no que apelidou de campos. Como pode ver-se de fls. 83 a 85 e 87 e 88, estes campos constituem subunidades estanques, aos quais é atribuida uma pontuação autónoma e separada, variável entre 0 a 10, 0 a 20, 0 a 30, 0 a 35, 0 a 40 e 0 a 50, e 0 a 60 pontos dentro do factor valor técnico, e entre 0 a 50, 0 a 100, 0 a 150, 0 a 250, e 0 a 350 no factor exploração e manutenção.
E é depois a soma de todas essas pontuações que conduz às classificações finais em cada um dos sub-factores e factores em apreço.
Resulta muito claro da sequência da matéria de facto, que a sentença alinhou com o maior rigor, e das pertinentes considerações feitas pelo seu autor a fls. 410, que o último relatório final de apreciação das propostas incorporou e assumiu plenamente os ditos campos, respectiva ponderação e aplicação, dando assim origem a que o acto de adjudicação, na medida em que se louva nesse relatório, se tenha deixado inquinar pelo vício detectado.
Dito isto, resta apenas encarar o derradeiro argumento da recorrente, de que a sentença julgou procedente o vício de violação do art. 94º, nº 1, sem avaliar quais os concretos efeitos lesivos que daí derivaram para a recorrida.
Diga-se, em primeiro lugar, que seria à ora recorrente, e recorrida contenciosa, que competiria o ónus da prova de que a violação em causa teria sido isenta de consequências no plano avaliativo. Trata-se, com efeito, de um elemento destinado a paralisar o direito invocado pela recorrente, comportando-se assim como seu facto impeditivo ou extintivo (art. 342º, nº 2, do Código Civil), e a verdade é que a recorrente não se entregou à tarefa de demonstrar que o resultado do concurso seria forçosamente o mesmo, caso não tivesse sido adoptada a grelha classificativa que incluía os sub-critérios dos sub-critérios.
Mas nem se vê como é que lhe teria sido possível efectuar tal demonstração, sem colocar o tribunal na posição impossível, porque específica dum administrador activo e por isso afrontosa da separação dos poderes, de ser ele a fazer a avaliação e graduação alternativa, tornada necessária em consequência do desaparecimento dos sub-critérios ilegalmente fixados.
Crê-se mesmo que somente em hipóteses-limite, que serão muito raras, é que o tribunal poderá concluir que violações desta ordem não tiveram reflexos na classificação dos concorrentes, ou não lesaram a posição classificativa do recorrente contencioso.
Mas, além disso, é perfeitamente defensável que, mau grado a crescente subjectivação do recurso contencioso, quer os princípios gerais e concursais, quer uma norma como a do art. 94º do D-L nº 197/99, na medida em que são inspirados em preocupações com a transparência e a isenção com que a actividade administrativa tem de decorrer, visam em primeira linha prevenir o mero perigo da postergação de semelhantes valores, e só secundariamente a lesão concreta de interesses particulares que daí possa resultar.
Atinge-se, assim, a conclusão de que a sentença impugnada decidiu bem, improcedendo a totalidade das alegações da recorrente.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Taxa de justiça: 450,00 €
Procuradoria: 50%.
Lisboa, 2 de Abril de 2003.
J Simões de Oliveira – Relator – Madeira dos Santos – Abel Atanásio

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