terça-feira, 22 de novembro de 2011

CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL CONTRATAÇÃO PÚBLICA ILEGITIMIDADE ACTIVA


Proc. 647/09.0BEAVR  TCAN

CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
CONTRATAÇÃO PÚBLICA
ILEGITIMIDADE ACTIVA

I. No âmbito de acção especial impugnatória, parte legítima é todo aquele que retire da anulação do acto impugnado um benefício concreto, não contrário à lei, que directa e imediatamente se reflecte na sua esfera jurídica pessoal;
II. Assiste legitimidade activa para pedir a declaração de nulidade do procedimento concursal, à pretensa concorrente que, após se ter documentado sobre o regulamento do respectivo concurso, e antes de terminada a fase de apresentação das propostas, pretende que sejam rectificadas ilegalidades desse regulamento, que, a ser cumprido tal qual está, lhe exigiriam a apresentação de proposta que considera inexequível.

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
Relatório
P… SA - com sede na rua …, Linda-a-Velha – interpõe recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro - em 23.12.2009 – que a julgou parte ilegítima no processo e absolveu o Município de Ovar da instância – trata-se de um saneador/sentença, proferido em processo urgente, do contencioso pré-contratual, em que a ora recorrente demanda o Município de Ovar pedindo ao tribunal que declare a nulidade de todo o procedimento concursal (relativo a concurso público de Aquisição de Licenciamento Global de Software Microsoft) por ele lançado, devido a alegadas ilegalidades de normas do Programa de Concurso e do Caderno de Encargos, e a condenação do réu a suprir tais ilegalidades, dando cumprimento integral às exigências do Código dos Contratos Públicos.
Conclui assim as suas alegações:
1- A recorrente é parte legítima na acção, dado que a mesma tem interesse directo na causa, legitimidade activa que deve aferir-se pelos interesses das partes na relação controvertida, tal como é apresentada e configurada pela autora;
2- A decisão judicial recorrida viola, entre outros, os artigos 9º, 55º nº1 alínea a), e nº3, 73º nº2, 89º nº1 alínea d), e 100º nº1 e nº2, todos do CPTA, e 288º nº1, do CPC, pelo que deve a mesma ser revogada e substituída por outra que declare a autora parte legitima na acção, que deverá seguir a sua tramitação.
O recorrido contra-alegou, mas não formulou conclusões.
O Ministério Público [artigo 146º nº1 do CPTA] não se pronunciou.
De Facto
É o seguinte o teor do saneador/sentença recorrido:
[…] No presente processo […] a autora P…, LDA […] vem demandar o MUNICÍPIO DE OVAR […] relativamente ao procedimento concursal publicitado por Anúncio de Procedimento nº4501/2009 [publicado no Diário da República nº184 de 22.09.2009] formulando a final o pedido nos seguintes termos:
Termos em que deve ser declarada a nulidade de todo o procedimento concursal dado que se verifica a ilegalidade das normas do Programa do Concurso e do Caderno de Encargos em geral e em particular a norma constante do ponto 8.6 e 11 do PC e do ponto 13 do procedimento concursal – concurso público publicado no DR nº184 de 22.09.2009 (anúncio nº4501/2009) e referente à Aquisição de Licenciamento Global de Software Microsoft (Acordo Microsoft Enterprise Agreement) promovido pelo Município de Ovar, dado que o mesmo é ilegal uma vez que viola, entre outras, as seguintes disposições legais: artigo 47º, 74º nº1 alínea a), 75º, 132º nº1 alínea n), e nº4, do CCP, 8º, 9º, 10º e 14º, do DL nº197/99 de 08.07, e 266º da CRP.
Mais se requer que o Município de Ovar seja condenado a suprir as ilegalidades referidas supra, dando cumprimento integral às exigências do CCP no tocante ao objecto deste procedimento concursal – concurso público.
Requer-se, ainda, que seja o procedimento concursal suspenso até que seja declarada a ilegalidade do procedimento.
Feita a citação do réu, e findos os articulados, importa agora, atenta a natureza do processo, e ao abrigo do disposto nos artigos 87º e seguintes do CPTA, ex vi do nº1 do artigo 102º do mesmo Código, proceder ao saneamento dos autos proferindo o seguinte:DESPACHO SANEADOR
1. DO TRIBUNAL
Este Tribunal é o competente em razão da matéria, da nacionalidade, da hierarquia e do território.
2. DAS PARTES:
As partes têm personalidade e capacidade judiciária e estão devidamente representadas em juízo.
Sendo que improcede a excepção de ilegitimidade passiva suscitada pelo réu MUNICÍPIO DE OVAR, nos termos em que foi por este invocada. Com efeito, muito embora a autora não tenha procedido à identificação de quaisquer contra-interessados [mormente dos concorrentes que entretanto se apresentaram ao identificado concurso público, apresentando as suas propostas], resulta porém que a tanto não estava obrigada, já que a sua identidade [e existência] era desconhecida à data em que a autora apresentou a sua petição inicial [07.10.2009], uma vez que na ocasião ainda decorria o prazo para apresentação de propostas, atenta a data da publicação do Anúncio [22.09.2009] e o prazo para apresentação das propostas nele vertido, como sustenta a autora na sua resposta [a folha 92 dos autos]. Pelo que tendo presente o artigo 57º do CPTA, e o conceito de contra-interessados nela acolhido [entendidos como as pessoas a quem a procedência da acção possa prejudicar ou que tenham interesse na manutenção da situação concreta contra a qual se insurge o autor, e que possam ser identificadas em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo], não colhe o entendimento assim defendido pelo réu.
Porém, arguiu também o réu, na sua contestação, que muito embora a autora tenha declarado na sua petição inicial pretender concorrer ao identificado concurso público o não fez, sustentando que se não está presente no concurso em igualdade de circunstâncias com as empresas suas concorrentes a si se deve. Por seu turno a autora responde [folha 92 dos autos] que pretende concorrer ao concurso logo que seja reposta a legalidade das normas regulamentares, sustentando que ao contrário não faria qualquer sentido a acção instaurada.
Ora, nesta parte assiste razão ao réu, não detendo a autora legitimidade activa com interesse em agir, atento disposto no artigo 55º nº1 alínea a) do CPTA, aqui aplicável ex vi do artigo 100º nº1 do mesmo código. Com efeito, de harmonia com o disposto no artigo 55º nº1 alínea a) do CPTA têm legitimidade para impugnar um acto administrativo quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, exigindo-se assim para o impulso processual, a título individual, a existência de interesse na anulação do acto, aproximando-se o conceito de legitimidade para efeitos da acção impugnatória da concepção vertida no artigo 26º nº1 do CPC, segundo a qual o autor é parte legítima quando tem interesse em demandar. E tal interesse vem a traduzir-se na utilidade, benefício ou vantagem concreta para o autor com a anulação do acto impugnado [neste sentido, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Maio de 2005, páginas 278 a 281, em comentário ao artigo 55º CPTA]. O que no presente caso também vale relativamente à impugnação das identificadas normas vertidas no Programa do Concurso e Caderno de Encargos, atento o disposto no nº2 do artigo 100º do CPTA, cuja ilegalidade é suscitada pela autora.
No caso vertente a autora referiu na sua petição inicial [apresentada neste tribunal quando ainda decorria o prazo para apresentação das propostas ao Concurso Público aqui em causa] ter intenção de a ele concorrer. Veio-se porém a verificar que não o fez. Defende que mantém interesse na pretendida declaração de nulidade das identificadas normas concursais e subsequente anulação do concurso. No entanto assim não é já que à luz das normas processuais supra referidas exige-se que o autor de uma acção de impugnação tenha um interesse directo e pessoal na demanda, não bastando uma mero interesse eventual, [ou genérico], nem sequer o interesse na reposição da legalidade. Sendo que as normas concursais cuja invalidade a autora invoca não lhe tolhiam a possibilidade de apresentar proposta, como ademais entretanto fizeram as concorrentes que entretanto se apresentaram ao concurso, podendo reagir judicialmente a final, caso considerasse que por efeito da sua aplicação, estivesse inquinado o acto de adjudicação [na sequência da apreciação das propostas com aplicação dos critérios contra os quais se insurge]. Conclusão a que também nos conduziria o artigo 73º nº2 do CPTA, este respeitante à impugnação de normas, que apenas admite a impugnação de normas [com a sua desaplicação no caso concreto] por quem seja por ele lesado quando os seus efeitos se produzam imediatamente, sem dependência de um acto administrativo. Ora no caso nunca se pode chegar à conclusão de que a autora foi lesada pelas normas concursais que impugna por as mesmas se referirem a critérios de apreciação das propostas e a autora não ter chegado a apresentar a sua, a qual não foi assim objecto de qualquer concreto acto administrativo.
Posto isto, forçoso é reconhecer que a autora não detém interesse em agir, carecendo, por conseguinte, nesse segmento, da correspondente legitimidade activa, o que obsta ao conhecimento do mérito da acção, e conduz à absolvição do réu da instância - artigos 55º nº1 alínea a), 73º nº2, 100º nº1 e 89º nº1 alínea d) do CPTA e artigo 288º nº1 do CPC.
[…]
Julgando procedente, nos termos supra expostos, a excepção dilatória da ilegitimidade da autora, o que obsta ao conhecimento do mérito da acção, absolve-se o réu da instância - artigos 89º nº1 alínea d) do CPTA e artigo 288º nº1 do CPC.
De Direito
I. Cumpre apreciar a questão suscitada pela recorrente, o que deverá ser efectuado dentro das balizas estabelecidas, para o efeito, pela lei processual aplicável – ver artigos 660º nº2, 664º, 684º nº3 e nº4, e 685º-A, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 140º do CPTA, e ainda artigo 149º do CPTA, a propósito do qual são tidas em conta as considerações interpretativas tecidas por Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª edição, páginas 447 e seguintes, e Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista, página 850 e 851, nota 1.
II. A autora da acção urgente, de natureza pré-contratual, veio pedir ao tribunal que declare nulo todo o procedimento do concurso público para Aquisição de Licenciamento Global de Software [Acordo Microsoft Enterprise Agreement] promovido pelo Município de Ovar, com fundamento na ilegalidade do Programa de Concurso [PC] e Caderno de Encargos [CE] [em particular dos pontos 8.6 e 11 do PC e 13 do procedimento concursal], por violação dos artigos 47º, 74º nº1 alínea a), 75º, 132º nº1 alínea n), e nº4, todos do Código dos Contratos Públicos [CCP aprovado pelo DL nº18/08 de 29.01]. Pede, ainda, que o procedimento concursal seja suspenso até ser apreciada a sua legalidade, e que o município réu seja condenado a suprir todas as ilegalidades detectadas.
O TAF de Aveiro absolveu o réu da instância, com fundamento na ilegitimidade da sociedade autora, sobretudo por entender que, uma vez que ela não concorreu ao concurso em causa, não teria interesse directo na declaração de nulidade do procedimento concursal.
Desta decisão discorda a autora que, enquanto recorrente, lhe imputa erro de julgamento de direito por má aplicação dos artigos 9º, 55º nº1 alínea a), e nº3, 73º nº2, 89º nº1 alínea d), e 100º nº1 e nº2, todos do CPTA, e 288º nº1, do CPC.
Ao conhecimento deste erro de julgamento de direito se reduz, pois, o objecto do presente recurso jurisdicional.
III. O que se pretende saber, com o requisito da legitimidade, é a posição que devem ter as partes, perante a pretensão deduzida em juízo, para que o julgador possa e deva pronunciar-se sobre o mérito da causa, julgando a acção procedente ou improcedente.
O pressuposto processual da legitimidade é, pois, condição para a obtenção de pronúncia sobre o mérito da causa, e assim se diferencia das chamadas condições de procedência da acção, enquanto requisitos indispensáveis para que a pretensão do autor proceda [ver Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, páginas 103 a 107].
Verificada a ilegitimidade do autor - ilegitimidade activa - o julgador abstém-se, assim, de apreciar o mérito da sua pretensão, e absolve o réu da instância, como aconteceu no presente caso - ver artigos 89º nº1 alínea d) do CPTA, 493º nº2, 494º alínea e) e 288º nº1 alínea d), do CPC ex vi artigo 1º do CPTA.
O princípio geral relativo à legitimidade na esfera administrativa encontra-se no artigo 9º nº1 do CPTA, segundo o qual sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no artigo 40º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida. O que quer dizer que, por princípio, só poderá litigar em juízo, como autor, quem alegue ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge o conflito [neste nº1 do artigo 9º do CPTA, e tal como já resultava do artigo 26º nº3 do CPC (depois da reforma de 1995/1996), o legislador tomou posição expressa e inequívoca sobre a velha querela relativa ao critério de determinação da legitimidade, encarnada por Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães - sobre os contornos desta querela pode ver-se Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume I, página 73, e Barbosa de Magalhães, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2º, nº1 e nº2, páginas 164 e seguintes].
Esse artigo 9º nº1 do CPTA retoma, pois, no essencial, o que já resultava dos artigos 26º e 26º-A do CPC, se bem que a referida regra geral se mostre menos ampla que a sua correspondente do nº1 do artigo 26º do CPC, em que o legislador elege como primeiro critério de legitimação o interesse processual - interesse em demandar contraposto ao interesse em contradizer - e a titularidade da relação jurídica controvertida como critério supletivo [artigo 26º nº3 do CPC].
Porém, e como sublinha a doutrina, esta aparente discrepância na formulação normativa não representa uma alteração substancial ao nível da proposição jurídica. A legitimidade activa, na lei processual administrativa, é determinada pela regulamentação particular que se encontra definida para cada um dos meios processuais considerados, e o princípio geral consignado no nº1 do artigo 9º, paralelamente ao previsto na correspondente norma do CPC, surge como um denominador comum que opera em todos os casos em que a disposição especial é omissa ou inconsequente […] - [ver Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, página 65].
É assim que o princípio geral do artigo 9º nº1 do CPTA é objecto de expressa ressalva relativamente ao regime específico em matéria de acção administrativa especial, quer no que respeita à impugnação de actos administrativos [artigo 55º CPTA], quer em relação à condenação à prática de acto legalmente devido [artigo 68º CPTA]. No artigo 55º nº1 alínea a) do CPTA, a lei já não elege a titularidade da relação jurídica administrativa como critério de aferição da legitimidade activa, visto se limitar a exigir que o autor da acção alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Aproxima-se, portanto, o conceito de legitimidade activa, para efeitos de acção impugnatória, do vertido no artigo 26º nº1 do CPC, segundo o qual, como deixamos dito, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar.
Deste
modo, para um juízo positivo sobre a legitimidade activa, é suficiente que o autor da acção administrativa especial alegue
, de modo fundamentado, ser titular de um interesse directo e pessoal na impugnação de determinada decisão administrativa, nomeadamente por ter sido lesado, por essa decisão, nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos [artigo 55º nº1 alínea a) do CPTA].
Relativamente à regra geral [9º nº1], trata-se de um alargamento da legitimidade activa, no âmbito da acção administrativa especial, reconhecido pela jurisprudência do STA em acórdão recente [AC STA de 29.10.2009, Rº01054/08] que, com a devida vénia, passamos a citar:
[…] [o artigo 55º nº1 alínea a) do CPTA] alarga a possibilidade daquele que não é titular da relação material controvertida poder propor uma acção deste tipo, para tanto lhe bastando alegar que é titular de um interesse directo e pessoal e de que este foi lesado, ainda que reflexamente, pelo acto que quer ver anulado. Sendo que o critério para se ajuizar da necessidade de tutela judicial é, precisamente, a utilidade ou vantagem que ele possa retirar da anulação contenciosa, atenta a sua intrínseca conexão com os efeitos imediatos do acto impugnado [Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, in CPTA Anotado, página 55; Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 3ª edição, página 93; e AC/Pleno deste STA de 21.02.2002, Rº40.961].
O que nos permite […] retirar duas importantes conclusões […]: a primeira, que se pode recorrer a juízo sem se ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge a lesão, e, a segunda, a de que não basta a invocação de um qualquer direito ou interesse para, automaticamente, se ter legitimidade activa, visto ser necessário que esse interesse seja directo e pessoal e, além disso, seja legítimo, isto é, tenha a cobertura do direito.
E, porque assim é, e porque a titularidade de um interesse directo e pessoal é fundamental para definir o conceito de legitimidade, cumpre definir o que se deve entender por interesse directo e pessoal.
[…] Nesse labor importa adoptar critérios abrangentes não só porque o artigo 268º nº4 da CRP garante a todos os interessados a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, mas também porque este STA tem entendido que, ao nível dos pressupostos processuais, e em homenagem aos princípios antiformalista e pro actione, a lei deve ser interpretada de modo a privilegiar o acesso ao direito e a uma tutela judicial efectiva [a propósito, ver AC STA de 02.06.1999, Rº44.498, AC STA de 07.12.1999, Rº45.014, AC STA de 15.12.1999, Rº37.886, AC STA de 16.08.2000, Rº46.518 e de AC STA de 09.04.2002, Rº48.200]. E, por isso, é de rejeitar uma interpretação restritiva do que se deve entender interesse directo e pessoal, já que isso poderia limitar o acesso à referida tutela, o que não significa que a mera invocação da violação de um direito ou interesse legalmente protegido baste para o autor ver reconhecida a sua legitimidade já que, não sendo a ilegalidade do acto critério para se aferir da legitimidade do autor, este só poderá ser declarado parte legítima quando alegue que o acto violador, para além de ilegal, é lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e que retira vantagens imediatas da sua anulação. Ou seja, e regressando ao texto legal, importa que o autor invoque a titularidade de um interesse directo e pessoal e não meramente longínquo, eventual ou hipotético […].
[…] Por fim - e para complemento do que se acaba de dizer - importa referir que a verificação da legitimidade deve ser reportada ao momento da propositura da acção visto que, enquanto pressuposto processual, ela tem de estar presente quando a instância tem início, e não antes, em que a anulação contenciosa não passa de mera possibilidade que o administrado poderá ou não a vir a utilizar. Na medida em que a legitimidade relaciona o interesse da parte e o desfecho do processo, só a existência real e conjectural desse processo é susceptível de convocar a necessidade do preenchimento do requisito [AC STA de 10.11.2004, Rº1576/03].
[…] Muito embora seja pacífico que o interesse é directo quando o benefício resultante da anulação do acto recorrido tiver repercussão imediata no interessado e que é pessoal quando a repercussão da anulação do acto recorrido se projectar na própria esfera jurídica do interessado” [Professor Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, volume IV, páginas 170 e 171] e que, por isso, o carácter pessoal do interesse está relacionado com a utilidade ou vantagem que o autor retira da anulação do acto e que esse benefício tem de ser directo, isto é, tem de ter repercussão imediata na sua esfera jurídica, as dificuldades surgem quando se trata de aplicar tais conceitos ao caso concreto.
[…] Podemos, pois, concluir que a indispensável e efectiva ligação entre o autor e o interesse cuja protecção reclama só garante a sua legitimidade quando, por um lado, ocorre uma situação de efectiva lesão que se repercute na sua esfera jurídica, causando-lhe directa e imediatamente prejuízos, e, por outro, quando daí decorre uma real necessidade de tutela judicial que justifique a utilização do meio impugnatório. Parte legítima é, assim, todo aquele que retire da anulação do acto impugnado um benefício concreto - patrimonial ou moral - não contrário à lei, que directa e imediatamente se reflecte na sua esfera jurídica pessoal. E, a contrario, que não gozam de legitimidade aqueles cujo interesse não é directo e imediato e, por isso, que a tutela requerida se traduz num benefício actual mas meramente hipotético e longínquo [a este propósito podem ver-se Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, páginas 83 e 84; Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, páginas 1356 a 1361 e, entre muitos outros, os Acórdãos deste STA de 24.10.1996, Rº40.500, de 22.06.1999, Rº44.568, de 24.02.2000, Rº40.961, de 18.05.2000, Rº45894, de 11.01.2001, Rº46.770, de 16.03.2001, Rº40.961, de 25.09.2001, Rº46.301, de 26.11.03, Rº46/02, de 03.03.2004, Rº1.240/03, de 16.06.2004, Rº953/03 e de 10.11.2004, Rº1576/03].
Como vemos, o alargamento do critério da legitimidade activa ínsito no artigo 55º nº1 alínea a) do CPTA traduz-se, na prática, numa questão nem sempre fácil de resolver, pelas dúvidas e incertezas que, por vezes, suscita. Essa norma legal é aplicável, é sabido, no âmbito do contencioso pré-contratual [artigo 100º nº1 do CPTA].
Também Ana Gouveia Martins, agora já no âmbito específico das acções urgentes do contencioso pré-contratual, e depois de abordar as imposições das Directivas Comunitárias [nº89/665/CEE e nº92/13/CEE, alteradas pela Directiva 2007/66/CE, 11.12.07], bem como as tendências da jurisprudência comunitária, chama a atenção para a necessidade de se afastar abordagens demasiado restritivas, à luz do princípio da tutela judicial efectiva, do interesse directo e pessoal e de proceder a uma interpretação ampla e generosa, conforme ao direito comunitário. Sob pena de o artigo 55º nº1 alínea a) [do CPTA], na parte em que se refere ao interesse directo como requisito da legitimidade, se revelar desconforme com o direito comunitário e, desse modo, dever ser desaplicado, dando-se prevalência à fórmula consagrada no artigo 1º nº3 das directivas, dado que está redigida em termos claros, precisos, suficientes e incondicionais que permitem a atribuição de efeito directo [Ana Gouveia Martins, A Tutela Cautelar no Contencioso Administrativo, Coimbra Editora, 2005, páginas 357 a 372].
E a verdade é que dessas directivas e jurisprudência, emerge um conceito de ”terceiro legítimo” como qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em celebrar o contrato, ou seja, independentemente, da sua participação no procedimento adjudicatório, exigindo-se, todavia, que esse interesse tenha sido de algum modo objectivado [Ana Gouveia Martins, obra citada, página 365 a 367].
IV. Voltemos ao nosso caso.
Analisada a petição inicial, esclarecida, em determinados pontos, pelo conteúdo do respectivo procedimento administrativo [PA], verifica-se que a autora, após ter tido conhecimento do anúncio do concurso em causa [publicado no DR de 22.09.09], tratou de adquirir o PC e CE na mira de a ele se candidatar, na qualidade de empresa parceira da Microsoft Portugal. Porém, depois de ter analisado essa regulamentação, concluiu que os critérios de adjudicação - consagrados no nº11 do PC - padeciam de obscuridades e incongruências, porque pontuavam assistência técnica e formação que as potenciais concorrentes [parceiras da Microsoft Portugal] não poderiam assegurar, sendo certo que as propostas que não incluíssem essa prestação de serviços seriam excluídas – nº8.6 do PC.
Deste modo, e a seu ver, tornava-se inviável, para as potenciais concorrentes, apresentar propostas exequíveis, e, para a ré, classificar devidamente as propostas que, mesmo assim, fossem apresentadas.
Face a isto, a recorrente comunicou ao réu que não iria apresentar qualquer proposta, dado que analisadas as normas regulamentares do concurso concluiu pela existência de ilegalidades que contaminam todo o procedimento concursal [ver folha 1 do PA], e, ainda antes de ter terminado o prazo para apresentação das propostas, partiu para a impugnação judicial de todo o procedimento concursal, através desta acção, invocando a violação de princípios estruturantes da contratação pública [princípio da concorrência e princípio da proporcionalidade], e de um conjunto de normas legais [artigos 47º, 74º nº1 alínea a), 75º, 132º nº1 alínea n), e nº4, todos do CCP], na mira de ver reposta a legalidade do procedimento, e aberta, assim, a possibilidade de a ele se candidatar com a apresentação de proposta viável e exequível.
Note-se, pois, que esta acção foi intentada antes de terminado o prazo para apresentação de propostas, e visando, inclusive, obstar a que fossem sequer apresentadas [como deixamos dito supra, e independentemente da sua admissibilidade, um dos pedidos formulados é o da suspensão do procedimento concursal até ser apreciada a sua legalidade].
Note-se, ainda, que a autora pede a declaração de nulidade de todo o procedimento de concurso, incluindo PC e CE, pois que, a seu ver, integram exigências que a adjudicatária, seja ela quem for, não poderá cumprir, sendo o concurso, portanto, de objecto impossível, e consequentemente nulo.
Note-se, por fim, que a autora alegou sempre, mesmo perante a entidade que lançou o concurso, o seu interesse em nele participar, só não o fazendo porque, face a exigências feitas na regulamentação do mesmo, teria de apresentar uma proposta inexequível, coisa que se recusou a fazer. Mas, logo que reposta a legalidade do procedimento, ela pretende concorrer, com proposta agora viável. Aliás, caso assim não fosse, não faria sentido a presente acção.
Ora, independentemente do mérito do que é dito pela autora, pois não é isso que ora está em causa, cremos que lhe assiste legitimidade para a acção.
Na verdade, e tendo presente a súmula de lei, de jurisprudência e de doutrina, que deixamos dita na parte III deste acórdão, teremos de concluir, cremos, que a autora alega ser titular de um interesse directo e pessoal na declaração de nulidade do procedimento de concurso, promovido pelo Município de Ovar, para a Aquisição de Licenciamento Global de Software [Acordo Microsoft Enterprise Agreement].
Ela não se limita a expressar um mero interesse na reposição da legalidade, antes funda a sua legitimidade nos reflexos que tal reposição terá na sua esfera jurídica, na medida em que, declarado nulo todo o procedimento de concurso, pelos motivos que ela aponta, se terá de iniciar novo concurso, agora de forma legal, permitindo-lhe concorrer com proposta viável e exequível.
Ou seja, o bem jurídico que a autora se apresentou a defender foi o seu interesse pessoal em concorrer, o qual foi posto em causa por exigências inexequíveis, a seu ver, feitas na regulamentação do concurso.
E a utilidade, o benefício ou a vantagem concreta, que a autora pretende retirar da declaração de nulidade de todo o procedimento de concurso, traduz-se na sua real possibilidade de a ele concorrer, sendo que se verifica, assim, uma relação etiológica, directa, entre essa sua pretensão e o benefício com ela visado. Para mais, esta legitimidade deverá ser aferida reportada ao momento da propositura da acção.
O facto negativo determinante do julgamento feito em primeira instância – o facto de a autora não ter concorrido – mostra-se destituído dessa relevância determinante, não só porque emerge da própria causa de pedir da acção, mas também porque deverá ser reportado ao tempo em que esta foi intentada. Além disso, como deixamos referido, por alusão às pertinentes directivas e jurisprudência comunitárias, tal facto negativo não é determinante, por si só, da falta de legitimidade activa [note-se que esta terminologia, de directivas e jurisprudência comunitárias, está hoje ultrapassada, com o Tratado de Lisboa. Todavia, usá-mo-la reportada ao tempo em que foram publicadas e proferida].
Ressuma, assim, que o recurso jurisdicional terá de ser provido, revogada a decisão judicial recorrida, e continuada a acção no tribunal a quo, caso nada mais obste a tal.
Decisão
Nestes termos, decidem os Juízes deste Tribunal Central, em conferência, o seguinte:
- Conceder provimento ao recurso jurisdicional e revogar a decisão judicial recorrida;
- Ordenar a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância, para aí prosseguirem os seus termos de acordo com o que resulta deste acórdão, caso nada mais obste a tal.
Custas pelo recorrido – artigos 446º, 447º, 447º-C e 447º-D, todos do CPC, 189º do CPTA, 1º, 2º, 3º nº1, 6º nº2, 7º nº2, 12º nº2, 13º nº1 e 29º nº2, todos do RCP, bem como Tabela I-B a ele Anexa.
D.N.
Porto, 22 de Abril de 2010
Ass. José Augusto Araújo Veloso
Ass. Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro
Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho

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