terça-feira, 22 de novembro de 2011

CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL – ILEGALIDADE DO PROGRAMA – FASE DE NEGOCIAÇÃO – EMPREITADA – TIPICIDADE - CONDENAÇÃO À PRÁTICA DE ACTO DEVIDO



Proc. Nº 7228/11 TCAS


CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL – ILEGALIDADE DO PROGRAMA – FASE DE NEGOCIAÇÃO – EMPREITADA – TIPICIDADE - CONDENAÇÃO À PRÁTICA DE ACTO DEVIDO

1. .A actividade do MP na A.A. Especial é apenas a prevista nos arts. 55º-1-b, 62º, 85º e 146º-1 do CPTA.

2. O acto de adjudicação pode ser ilegal com base na ilegalidade de um qualquer acto anterior ou de uma ilegalidade normativa concursal. Com efeito, o nº 2 do art. 100º do CPTA é uma faculdade acrescida ao nº 1 do mesmo artigo. Pelo que o interessado pode optar por só atacar a adjudicação (art. 100º-1) com base numa ilegalidade das referidas no nº 2 do art. 100º do CPTA.

3. No caso de procedimentos relativos a contratos de empreitada de obras públicas, a entidade adjudicante não pode adoptar uma fase de negociação das propostas (arts. 248º e 249º do CCP).

4. Tal adopção da citada fase é, pois, ilegal e viola o princípio da tipicidade procedimental (v. arts. 1º-1-2 e 16º do CCP).

5. O relatório final não é impugnável, face ao disposto nos arts. 120º CPA, 51º do CPTA e 148º e 269º do CCP; ele vai servir como a base da decisão de adjudicar ou não.

6. E nada proíbe a decisão final no mesmo dia do relatório final.

7. O processo regulado nos arts. 100º ss do CPTA, dada a sua natureza urgente relacionada com imposições de direito comunitário por causa da tutela efectiva devida à concorrência, comporta a via impugnatória e a via condenatória à prática de actos administrativos. Afinal, a adjudicação é um acto de conteúdo
ambivalente, que pode ter de ser substituído por outro que seja lícito ou devido (v. art. 47º-2-a) do CPTA).

Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I – RELATÓRIO
B……… – Engenharia ……………, Lda., com os sinais dos autos, intentou no T.A.C. de Leiria processo urgente do tipo regulado nos arts. 100ºss do CPTA (processo de contencioso pré-contratual) contra
MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL
(e como Contra-Interessadas)
N………… II – EMPREENDIMENTOS …………., S.A., com os sinais dos auto, e OUTRAS,
pedindo
1) a anulação da decisão de adjudicação de obra pública de “Construção de um pavilhão destinado a operações de manutenção e treino de veículos submarinos de operação remota (ROV)” à concorrente, ora contra-interessada, N.. G…….. II, S.A.,
2) bem como dos actos dela dependentes – a saber: a fase de negociação de propostas, o 2º Relatório Preliminar e o 2º Relatório Final – e
3) a condenação da entidade demandada na adjudicação da empreitada à Autora
4) ou, caso não se afigure exequível, à data da execução da decisão que for proferida na presente acção, a adjudicação da empreitada à Autora, no pagamento de uma indemnização a liquidar em execução de sentença, por não ser possível calcular o respectivo montante neste momento – tudo com os seguintes fundamentos:
inadmissibilidade, e portanto ilegalidade, da fase de negociação prevista no art.º 11º do Programa do Procedimento (PP) no concurso público de empreitada de obra pública, devendo, por isso, ser aquele preceito regulamentar como não escrito;
defraudação de legítimas expectativas da Autora de ser-lhe adjudicada a empreitada, porquanto o Júri já havia avaliado as propostas e graduado a da Autora em 1º lugar, por apresentar o preço mais baixo, único critério de adjudicação;
ter sido tomada a decisão de adjudicação antes de e sem ter sido dada à Autora a possibilidade de sobre a proposta de adjudicação contida no 2º Relatório Final do Júri bem como sobre este Relatório, notificado à Autora no mesmo dia que aquela decisão, violando-se, por isso, a al. c) do n.º 1, do art.º 272º do Código dos Contratos Públicos (CCP).
Após a contestação, o saneador e as alegações, por sentença do T.A.C. citado foi a referida acção julgada improcedente.
Inconformada, a autora deduziu o presente recurso de apelação, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
A)
O Tribunal a quo entra em incoerência e contradição entre os fundamentos da decisão e a decisão proferida, porquanto reconhece uma ilegalidade de fundo no acto impugnado pela Recorrente e não conclui o desfecho das consequências jurídicas de tal ilegalidade, levantando a questão da Recorrente não ter pedido a ilegalidade da norma considerada ilegal, mas não retirando daí quaisquer consequências para a presente acção, uma vez que deriva para a questão do abuso de direito e da má fé para determinar a falência do direito. Como se sabe a contradição, incoerência e falta de lógica entre os fundamentos e a decisão torna a mesma nula, conforme disposto no artigos 668.° do CPC.
B)
A questão do não pedido directo de impugnação da norma do programa de procedimento, constitui um incidente legalmente enquadrável no saneamento da instância, de acordo com as normas dos artigos 78.° e seguintes do CPTA, cometendo o Tribunal a quo um incumprimento de norma processual ao não ter saneado a instância, o que se alega acaso proceda a tese de fundo propugnada pelo mesmo no que não se concede, conforme se alegou e se demonstra de seguida em conclusões.
C)
Bem como não é correcto o argumento judicial de falta de poder oficioso para proceder a tal invocação, pois que ainda na mesma linha de raciocínio, com a ressalva supra referida na conclusão anterior, sempre era bom de ver que deveria o Tribunal a quo ter aberto vista ao Ministério Público, para aferir de tal questão de ilegalidade de norma.
D)
Por fim refira-se que é errónea interpretação e aplicação do artigo 73.°, n. 2 do CPTA ao presente caso, uma vez que a lesão do direito da Recorrente advém da prática ilegal de acto, a saber o de adjudicação, o qual tem de ser removido da ordem jurídica e substituído por outro que cumpra a lei e respeite o direito da Recorrente, o que apenas se alcança pela impugnação do acto e não da norma, até porque a norma em causa (artigo 11.° PP) se restringe a efeitos internos no concurso e o acto de adjudicação tem efeito erga omnes, pelo que seria inútil atacar a norma e deixar o acto em vigor.
E)
A Recorrente não actuou em abuso de direito, muito menos na vertente de venire contra factum proprium, pois não poderia actuar contra algo que não promoveu e não elaborou, a saber o concurso, o programa de procedimento e todos os demais procedimentos concursais, a Recorrente foi uma normal candidata, que acreditou, para mais, que a própria norma ínsita no artigo 51.° do CCP que determina o princípio da prevalência das normas do CCP sobre quaisquer disposições das peças do procedimento com elas desconformes, seria o suficiente para declarar a ilegalidade frontal ao disposto na lei - como é o caso da norma do artigo 11 do PP, em face do disposto no artigo 51º do CPP, teria sempre de ser tomada como letra morta.
F)
É totalmente equivocada a invocação e fundamento de que a Recorrente actuou em abuso de direito, e com má fé, com assento em que a mesma apenas invoca a ilegalidade do acto e da fase de negociação quando do mesmo poderia tirar partido - pois veja-se que a Recorrente apenas nesse momento (em que era lesada e ficaria prejudicada pela prática do acto) teria legitimidade para tal invocação de ilegalidade - de outra forma seria parte ilegítima reclamando de acto que não lhe era desfavorável.
G)
A Recorrente tem direito à tutela das suas legítimas expectativas, e estas são efectivamente legítimas, na medida em que a ter sido cumprido o normativo legal era a Recorrente que veria ser adjudicado à sua proposta a empreitada a concurso, pelo que encontrando-se a mesma em primeiro lugar na ordenação legal das propostas com base em critério de valoração regularmente definido, devem ser atendidas tais expectativas.
H)
É ilegal a decisão de adjudicação que não respeita o prazo de impugnação administrativa, proferindo a entidade adjudicante a decisão de adjudicação em simultâneo com a notificação da proposta definitiva do Júri, direito dos administrados - vide o artigo 272.°, n.º 2, alínea c), sendo claro o erro da decisão recorrida ao não o reconhecer.
Termos em que julgando o presente recurso procedente e anulando a decisão recorrida, com base nos fundamentos invocados ou noutros que á luz do direito se revelem aplicáveis e mais correctos, e substituindo-a por outra que determine a procedência da acção proposta no Tribunal a quo farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA.
O MDN contra-alegou.
*
O Exmº representante do Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado para, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do CPTA, se pronunciar sobre o mérito do recurso (art. 146º nº 1 do CPTA).
*
Após entrega prévia de cópias do projecto, cumpre apreciar e decidir em conferência.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. OS FACTOS PROVADOS
A factualidade declarada provada pelo tribunal de 1ª instância foi:
Com interesse para a decisão consideram-se provados os seguintes factos, apurados no saneador:
A) No dia 10 de Fevereiro de 2010, por aviso de procedimento n.º 457/2010, publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 28, foi aberto concurso público para a “Construção de um pavilhão destinado a operações de manutenção e treino de veículos submarinos de operação remota” (doc. 1 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
B) Tendo, nessa data, sido disponibilizadas em plataforma electrónica as peças do concurso (ponto 9 do aviso cit.);
C) No aviso de abertura do concurso, no ponto dedicado ao “Objecto do Concurso”, foi indicado o tipo de contrato – a saber: “Empreitada de Obra Pública” (ponto 2 do aviso identificado como doc. 1);
D) Como critério de adjudicação o “mais baixo preço” (ponto 12 do aviso identificado supra como doc. 1);
E) E nas “Indicações adicionais”, que é adoptada uma fase de negociação (ponto 3 do aviso cit.);
F) A Autora apresentou candidatura à adjudicação de tal empreitada (v. o Relatório Preliminar do Júri, junto com a petição inicial como doc. 3 e cujo teor se dá por reproduzido);
G) A proposta da Autora foi admitida (v. o Relatório Preliminar cit.);
H) Por “declaração” datada de 10 de Março de 2010 a Autora declarou ter tomado inteiro conhecimento do Caderno de Encargos (CE), comprometendo-se a executar o contrato em conformidade com o CE, cujas cláusulas declara aceitar sem reservas (doc. 1 junto com a contestação da entidade pública demandada e cujo teor se dá por reproduzido);
I) Dá-se por reproduzido o teor do artigo 11º do Programa do Procedimento (PP), que tem por epígrafe “fase de negociação” (doc. 2 junto com a petição inicial);
J) No dia 12 de Março de 2010 o Júri do concurso emitiu Relatório Preliminar (1), do qual consta a análise, avaliação e ordenação das propostas (doc. 3 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
K) A Autora consta em 1º lugar na ordenação das propostas (doc. 3 cit.);
L) Em 23 de Março de 2010 o Júri do concurso proferiu Relatório Final (2), no qual manteve a ordenação das propostas anunciada no Relatório Preliminar (doc. 4 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
M) E anunciou, sob a epígrafe, “Fase de Negociação”, a selecção dos concorrentes ordenados nos três primeiros lugares para uma fase de negociação (doc. 4 cit.);
N) No ponto IV do Relatório Final o Júri deliberou propor para aprovação a lista, contendo a ordenação dos concorrentes segundo o critério de avaliação das propostas (o do mais baixo preço) – doc. 4 cit.;
O) No dia 23 de Março de 2010 o Júri do concurso notificou para sessão de negociação, a ter lugar no dia 29 de Março de 2010, os três primeiros classificados da lista anunciada no Relatório Final (doc. 5 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
P) Sessão a que a Autora compareceu (v. a 1ª Acta da Sessão de Negociação junta com a petição inicial como doc. 7 e cujo teor se dá por reproduzido);
Q) Tendo apresentado como última proposta € 297 990,00 (doc. 7 cit.);
R) No dia 29 de Março de 2010 a Autora deu entrada de reclamação da realização de tal diligência, invocando, essencialmente, que a mesma não tinha aplicação legal no âmbito do concurso público para empreitada de obra pública, mas antes e só nos procedimentos concursais para celebração de contratos de concessão de obras públicas ou de concessão de serviços públicos (doc. 6 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
S) No dia 29 de Março de 2010 o Júri do concurso elaborou um documento a que chamou “1ª Acta Sessão Negociação”, no qual foi indeferida a reclamação da Autora e defendendo a legalidade da fase de negociação com apoio no disposto no art.º 132º, n.º 4, do CCP, continuou com a fase de negociação (doc. 7 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
T) No dia 1 de Abril de 2010 a Autora remeteu nova reclamação ao Ministério da Defesa Nacional, anunciando que mantinha a sua proposta inicial e que entendia inválida a existência de alterações às propostas iniciais que viessem a ser feitas (doc. 8 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
U) No dia 7 de Abril de 2010 o Júri do concurso elaborou um documento a que chamou “2º Relatório Preliminar”, no qual, no ponto I com a epígrafe “Análise, avaliação e avaliação final de propostas”, foi alterada a ordenação das propostas dos concorrentes constante do Relatório Final elaborado em 23 de Março de 2010, aparecendo a concorrente Novagente II – Empreendimentos Turísticos, S.A., em 1º lugar, a concorrente Joleu – Sociedade de Construções, Lda., em 2º lugar, e a Autora em 3º lugar (doc. 9 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
V) No dia 13 de Abril de 2010 a Autora pronunciou-se em sede de audiência prévia, com respeito à alteração da ordenação das propostas dos concorrentes constante do designado “2º Relatório Preliminar”, invocando a nulidade da sessão de negociação e da consequente alteração de propostas (doc. 10 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
X) No dia 20 de Abril de 2010 o Júri do concurso elaborou o que designou “2º Relatório Final”, no qual manteve a ordenação das propostas dos concorrentes indicada no “2º Relatório Preliminar” e apresentou resposta à invocação de nulidades pela Autora em sede de audiência prévia, indeferindo as pretensões desta e propondo a adjudicação da empreitada à concorrente Novagente II – Empreendimentos Turísticos, S.A. (doc. 11 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
Y) No mesmo dia 20 de Abril de 2010 a entidade com poder para contratar apôs no mesmo documento, dito “2º Relatório Final,” decisão de adjudicação aprovando a proposta do Júri do concurso, com os fundamentos nele vertidos (doc. 11 cit.);
Z) No dia 27 de Abril de 2010 a Autora apresentou reclamação da decisão do Júri do concurso que incidiu sobre a pronúncia da Autora em sede de audiência prévia sobre a legalidade da existência de uma fase de negociação (doc. 12 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
Z-a) Reclamação sobre a qual recaiu, no dia 30 de Abril de 2010, despacho dando por reproduzida a argumentação contida no Anexo B ao 2º Relatório Final (doc. 13 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
Z-b) O local de execução do contrato é Paço de Arcos, concelho de Oeiras (ponto 6 do aviso de abertura do concurso);
Z-c) A Autora tem sede em Vilas ….., Lote 10, Barreira, ……….;
Z-d) A petição inicial da presente acção foi remetida por transmissão electrónica de dados em 20 de Maio de 2010, conforme comprovativo de entrega que constitui a primeira folha dos autos.
*
II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O âmbito do recurso jurisdicional, cujo objecto é a decisão recorrida, é delimitado nas conclusões das alegações de quem recorre (sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso), apenas podendo incidir sobre questões que tenham sido ou devessem ser anteriormente apreciadas e não podendo confrontar o tribunal ad quem com questões novas (coisa diversa de considerações, argumentos ou juízos de valor).
Temos, pois, de apreciar o seguinte:
- contradição na sentença (art. 668º CPC);
- não houve pedido directo dirigido contra a norma regulamentar, mas houve falta de saneamento dessa questão e de abertura de vista ao MP para invocar tal ilegalidade;
- o art. 73º-2 CPTA não é aqui aplicável, sendo certo que a adjudicação é que causa a lesão e não a norma do art. 11º do PP;
- não há abuso do direito algum, como resulta do facto de a A. não ter dado origem a nada e ainda do teor do art. 11º PP e do superior art. 51º CCP, tendo todo o direito de agir só quando se sentiu prejudicada;
- não houve respeito pelo prazo de impugnação administrativa (v. arts. 268º, 269º e 272º-2-c do CCP, 163º e 170º do CPA e 59º-4 do CPTA).
0)
A fundamentação jurídica do tribunal a quo foi essencialmente a seguinte:
«a.
Considera a entidade pública demandada que, por estar em causa um concurso público para celebração de um contrato de empreitada de obra pública, não é admissível a fase de negociação de propostas prevista no art.º 11º do PP, a qual só pode ser usada quando se trate de contratos de concessão de obras públicas ou de concessão de serviços públicos (art.º 149º, n.º 1, do CCP).
Existe, hoje, no direito da contratação pública, por expressa opção do legislador, o princípio da tipicidade ou da legalidade das espécies procedimentais (art.º 16º do CCP), quer quando os procedimentos sejam usados isoladamente quer quando é enxertado o regime típico de um procedimento no de outro, funcionando aquele como subprocedimento e este como procedimento principal. A lei não autoriza à Administração a criar, a “inventar”, espécies procedimentais novas ou a inserir figuras procedimentais legais noutras.
Quando admite o enxerto, a lei regula, seja directamente seja por remissão, quer os pressupostos ou condições da sua admissibilidade quer a tramitação do subprocedimento enxertado, como paradigmaticamente acontece com a fase de negociação das propostas no âmbito do concurso público para formação de contratos de concessão de obras públicas ou de concessão de serviços públicos (artºs 149º a 154º do CCP).
Ora a chamada “fase de negociação das propostas” regulada pelos indicados artºs 149º a 154º é um verdadeiro subprocedimento enxertado no procedimento de concurso público e disciplinado “do princípio ao fim” por regras próprias.
Como se viu, o n.º 1 do art.º 149º do CCP só admite a fase de negociação das propostas no procedimento de concurso público dirigido à formação de contratos de concessão de obras públicas ou de concessão de serviços públicos (v., neste sentido, Vieira de Almeida & Associados, Código dos Contratos Públicos e legislação complementar, Guia de Leitura e Aplicação, Almedina, 2008, p. 577, Margarida Olazabal Cabral, “Concurso Público no Código dos Contratos Públicos”, in Estudos de Contratação Pública – I, Almedina, 2008, p.213 e s. e 217 e s.) – pelo que não pode, fora desses casos, ser enxertada em quaisquer outros procedimentos (sobre as razões desta limitação – a saber: o receio da subjectividade e de favorecimento dos concorrentes nacionais na negociação – v. aquele artigo de Margarida Olazabal Cabral.
Se o legislador quisesse admitir em geral uma fase de negociação no concurso público, nos casos em que este é admitido, ou especificamente no concurso público de empreitada de obras públicas (espécie de que aqui se trata), tê-lo-ia feito expressamente, prevendo os respectivos pressupostos e regulando a respectiva tramitação – o que não fez. Nestas circunstâncias, a disposição do n.º 4 do art.º 132º do CCP, segundo a qual “o programa do concurso pode ainda conter regras específicas sobre o procedimento de concurso público consideradas convenientes pela entidade adjudicante, desde que não tenham por efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência”, não pode ter em mente senão um tipo de adaptação semelhante à permitida pelo princípio da adequação formal (art.º 265º-A do CPC), a operar mediante “regras específicas”, que, todavia, não podem, sob pena de fraude à lei, contrariar proibições ou restrições ao uso de certas espécies procedimentais ou de regras próprias de certos tipos de procedimentos, contidas em outras disposições do CCP. O n.º 4 daquele art.º 132º não pretende derrogar as normas que estabelecem essas proibições ou restrições, nomeadamente o n.º 1 do art.º 149º do CCP.
Sendo assim, não podia a entidade adjudicante, sem base legal (porquanto a invocada não se aplica), ter introduzido pela porta do art.º 11º do PP uma fase de negociação das propostas no concurso público em cena.
Apesar disso, a Autora não só não pede (v. os pedidos formulados a final), podendo tê-lo feito ao abrigo do art.º 73º do CPTA, a declaração, com efeitos restritos ao seu caso concreto, da ilegalidade da norma do referido art.º 11º, fonte do “mal” que vê no acto impugnado, norma que, assim permanece incólume na ordem jurídica e, bem ou mal, continua a vincular a entidade adjudicante enquanto norma regulamentar que é e a legitimar o acto impugnado, não podendo o Tribunal, oficiosamente, desaplicá-la, como a atitude que teve ao longo do procedimento e que a entidade pública demandada considera causa de ilegitimidade activa constitui actuação em abuso do direito. Com efeito, a Autora, não obstante saber, pelo anúncio do concurso (ponto 3 – “indicações adicionais”) e programa do procedimento (art.º 11º cit.), que o concurso comportava uma fase de negociação, livremente apresentou a sua proposta, sem reserva ou objecção nem pedido de esclarecimentos; depois de analisadas e avaliadas as propostas em função do critério de adjudicação (o mais baixo preço) e graduada a sua em 1º lugar, manteve-se em silêncio; notificados do relatório preliminar, “os concorrentes [Autora incluída] nada referiram em sede de audiência prévia” (v. o “relatório final” junto com a petição inicial como doc. 4); notificada para a sessão de negociação, a Autora, não obstante considerar ilegal a existência de uma fase de negociação das propostas e apesar de ter sido desatendida a reclamação que apresentou, compareceu à sessão de negociação e alterou a sua proposta de € 317 685,42 para € 297 990,00 (v. a 1ª Acta da sessão de negociação junta com a petição inicial como doc. 7); a ruptura só se deu quando a Autora foi notificada do 2º relatório preliminar, para efeitos de audiência prévia, relatório do qual resultava que, na ordenação das propostas decorrente da negociação, a graduação da proposta da Autora passava de 1º para o 3º lugar (v. o “relatório preliminar” junto com a petição inicial como doc. 9).
Em suma, a Autora conviveu relativamente bem com a ilegalidade que invoca até se tornar certo que a negociação determinaria o afastamento da sua proposta do 1º lugar no concurso.
Semelhante comportamento configura actuação em abuso de direito, na espécie venire contra factum proprium (art.º 334º do CC), e violação do princípio da boa fé, que também vincula os particulares (art.º 6º-A do CPA), tornando ilícita a pretensão da Autora.
Por este conjunto de razões, a circunstância de ter sido realizada negociação no concurso em pauta não determina por si só a procedência da pretensão da Autora.
b.
Considera a Autora defraudadas as legítimas expectativas de ser-lhe adjudicada a empreitada, porquanto o Júri já havia avaliado as propostas e graduado a da Autora em 1º lugar, por apresentar o preço mais baixo, único critério de adjudicação.
Só são legítimas as expectativas que merecem a tutela do direito, por se conformarem aos valores básicos deste.
Ora sendo certo, desde o início do procedimento, que iria haver uma fase de negociação das propostas, a simples circunstância de, antes da realização da negociação, a proposta da Autora ocupar o 1º lugar na lista de graduação não lhe dava o direito de, justificada e razoavelmente pensar que, depois da negociação, o objecto do concurso lhe seria, necessariamente, adjudicado, mais a mais considerando que a Autora, como ficou demonstrado, actuou em abuso do direito.
Improcede, pois, a alegação em questão.
c.
Entende, enfim, a Autora que a decisão de adjudicação foi tomada antes de lhe ter sido dada a possibilidade de se pronunciar sobre a proposta de adjudicação contida no 2º Relatório Final do Júri bem como sobre o próprio Relatório, notificado à Autora no mesmo dia que aquela decisão, violando-se, por isso, a al. c) do n.º 1, do art.º 272º do Código dos Contratos Públicos (CCP). Mas não tem razão.
Ao 2º relatório final, que, na circunstância, inclui a pronúncia do Júri sobre as alegações da Autora sobre o projecto do mesmo relatório, no exercício do direito de audiência prévia, segue-se a decisão sobre a adjudicação (artºs 76º, 153º e 154º do CCP). Sobre o 2º relatório final e a decisão de adjudicação não há, porque a lei não a prevê, audiência prévia, sem prejuízo do direito de impugnação administrativa da adjudicação e, no âmbito dela, do direito de pronúncia sobre o 2º relatório final, como, aliás, a Autora fez. De outro modo, a cada relatório “final” elaborado pelo júri na sequência da audiência prévia dos concorrentes seguir-se-ia sempre nova audiência prévia e novo relatório “final”…ad infinitum.
Soçobra, por isso, também esta arguição.»
Vejamos.
1)
Da contradição na sentença entre os seus fundamentos e a decisão (art. 668º CPC)
A recorrente não identifica em concreto a contradição na sentença. E de facto não existe qualquer contradição (lógica, directa) na sentença nos termos previstos no art. 668º-1-c do CPC.
Aqui, portanto, a recorrente não tem razão.
2)
Não houve pedido directo dirigido contra a norma regulamentar, mas houve pelo tribunal ilegal falta de saneamento dessa questão (v. arts. 88º e 102º-1 CPTA?) e de abertura de vista ao MP para invocar tal eventual ilegalidade?
A recorrente invoca esta questão para se defender do facto apontado na sentença de ela não ter atacado a norma regulamentar do procedimento que permitiu a negociação neste tipo de procedimento, que foi de concurso público de empreitada de obra pública.
Carece de razão, porque o que diz respeito ao pedido é da exclusiva responsabilidade da A., não devendo o tribunal intervir em substituição do A., como é sabido e resulta dos arts. 3º-1, 264º-1 e 661º-1 do CPC (ex vi art. 1º CPTA, com a mitigação constante do art. 95º-2) e dos princípios do pedido e do dispositivo.
Cfr. J. LEBRE DE FREITAS, Introd. ao P. Civil…, pp. 128-129.
Já a referência ao MP é absurda, pois que o MP não pode sequer intervir em questões meramente processuais como esta (v. arts. 85º-2 e 102º-1 CPTA).
Aqui, portanto, a recorrente não tem razão.
3)
O art. 73º-2 CPTA (3) não é aqui aplicável, sendo certo que a adjudicação é que causa a lesão e não a norma do art. 11º do Programa do Procedimento/PP (que previu uma fase de negociação neste procedimento (4))?
A recorrente tem razão em certo sentido. Se há uma adjudicação (acto administrativo que põe fim ao procedimento pré-contratual – art. 51º-1 CPTA e art. 120º CPA), que a A. reputa de ilegal, com base em ilegalidade de um documento ou regulamento do procedimento, o lesado pode atacar a adjudicação, mesmo que antes não tenha atacado o regulamento. O oposto não resulta do art. 73º CPTA ou de outra norma.
O acto de adjudicação pode ser ilegal com base na ilegalidade de um qualquer acto anterior ou de uma ilegalidade normativa concursal.
Com efeito, o nº 2 do art. 100º CPTA é uma faculdade acrescida ao nº 1 do mesmo artigo. Pelo que o interessado pode optar por só atacar a adjudicação (art. 100º-1) com base numa ilegalidade das referidas no nº 2 do art. 100º CPTA.
Cfr. assim:
- MÁRIO AROSO…, Comentário…, 3ª ed., pp. 664-666;
- PEDRO GONÇALVES, in CJA nº 44, p. 7; e
- RODRIGO E. DE OLIVEIRA, in CJA nº 78, p. 14.
Aqui, portanto, a recorrente tem razão:
o interessado pode optar por só atacar a adjudicação deste contrato de empreitada de obras públicas (art. 100º-1 CPTA e arts. 16º-2-a) e 19º CCP) com base numa ilegalidade das referidas no nº 2 do art. 100º CPTA.
Trata-se da ilegalidade do cit. art. 11º do PP, que viola claramente o art. art. 149º-1 do CCP, ao prever uma (mera) fase de negociação neste procedimento de concurso público (No caso de contratos de concessão de obras públicas ou de concessão de serviços públicos, a entidade adjudicante pode adoptar uma fase de negociação das propostas). Diferente de uma fase de negociação dentro do concurso público (arts. 130º a 154º CCP, maxime art. 149º) é a escolha de um procedimento de negociação (v. arts. 29º, 31º e 193º a 203º CCP), escolha esta que aqui não foi a que se fez.
Assim também se viola o princípio da tipicidade procedimental (v. arts. 1º-1-2 e 16º CCP), uma das formas escolhidas para se prosseguirem os princípios base que são três: concorrência, transparência e igualdade (art. 1º-4 CCP).
Cfr:
- JORGE A. SILVA, Dicionário dos C.P., 2010, p. 294, e
- CCP Comentado e Anot., anot. ao art. 149º;
- MÁRIO e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e…, 2011, pp. 725-726 e 982-983.
4)
Não há abuso do direito, como resulta do facto de a A. não ter dado origem a nada e ainda do teor do cit. art. 11º PP e do superior art. 51º CCP, tendo todo o direito de agir só quando se sentiu prejudicada?
Supomos que o tribunal a quo se referiu ao abuso do direito de acção. Parece caber na litigância de má fé. Este é um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo, punindo uma conduta processual ilegal dolosa ou gravemente negligente (MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé…, Almedina, 2006, pp. 28 e 93), numa apreciação judicial casuística (cfr. Ac. STJ de 9-Jul-1998, P. nº 98B555; Ac. STJ 15-Out-2002, P. nº 02 A-2185).
Sobre a litigância de má fé e o abuso do direito de acção, cfr. MENEZES CORDEIRO, ob. cit., pp. 79 ss e 149 ss.
A noção de abuso do direito foi sempre referida em termos de contornos difíceis, conforme se depreende dos ensinamentos de MANUEL DE ANDRADE - Teoria Geral das Obrigações, 1958, páginas 63 e 64.
Dificuldades surgiram como apurar, em concreto, a existência do mesmo, desenhando-se duas correntes: uma, a subjectivista, coloca como critério decisivo ter o titular do direito procedido com o mero intuito de prejudicar o lesado; outra, a objectivista, o abuso do direito manifesta-se na oposição à função social do direito, excedendo-se anormalmente o seu uso.
O abuso de direito foi consagrado no Código de 1966 (artigo 334) segundo a concepção objectiva, conforme salienta ANTUNES VARELA ao escrever: "para que haja lugar ao abuso de direito, é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" (Das Obrigações em geral, vol. I, 6. edição, página 516).
Esta contradição é patente nos casos do "venire contra factum proprium": são os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando por exemplo, determinada causa de nulidade e anulação, resolução ou denúncia de um contrato, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação do contrato (ANTUNES VARELA, obra citada, página 517).
A proibição do "venire contra factum proprium" cai no âmbito do "abuso de direito" através da fórmula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé (ANTUNES VARELA, obra citada, página 517; BAPTISTA MACHADO, Tutela de confiança e Venire Contra Factum Proprium", in Obra Dispersa, vol. I, página 385).
A ideia imanente na proibição do "venire contra factum proprium" é a dos "dolus praesens", de que a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente, sendo a conduta anterior apenas ponto de referência, tendo em conta a situação então criada, se ajuizar da legitimidade da conduta actual, conforme sublinha Baptista Machado, que acrescenta que o efeito jurídico próprio do instituto só se desencadeia quando se verificam tais pressupostos:
1. uma situação objectiva de confiança; uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura,
2. investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada,
3. Boa-fé da contra-parte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico - obra citada, páginas 415 a 418.
Aqui devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa (MENEZES CORDEIRO, Tratado…, I, I, 2ª ed., pp. 233-238 e 268-269) e o objectivo a alcançar com a actuação empreendida (MENEZES CORDEIRO, Tratado…, I, I, 2ª ed., pp. 238-239 e 269). Com este instituto pretende-se assimilar as imanências da ordem jurídica, através de muitos vectores, sempre iluminados pela ideia de justiça, como os da previsibilidade e da não contraditoriedade das condutas.
São pressupostos da tutela da confiança como concretização da boa fé objectiva:
1. um comportamento (aqui, do Estado) gerador de confiança (aqui, na A.),
2. uma situação objectiva de confiança legítima,
3. a frustração da confiança por parte de quem (aqui, Estado) a gerou e
4. a efectivação de um investimento de confiança (aqui, por parte da A.),
numa lógica de “sistema móvel”, ou seja, de que a falta de algum dos pressupostos pode ser compensada pela intensidade especial de outro.
Cfr. assim:
- Ac. STJ de 5-2-1998, BMJ 474º, pp. 431 ss;
- Ac. STJ de 25-5-1999, CJSTJ (2000), 2, pp. 190 ss;
- Ac. STJ de 20-1-1994, BMJ 433, pp. 495 ss;
- MENEZES CORDEIRO, Tratado…, I, I, 2ª ed., pp. 235;
- MARCELO REBELO DE SOUSA…, D. Adm. Geral, I, pp. 213 ss;
- JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, C.P. Anotada, III, p. 576).
O art. 11º do PP prevê a negociação neste procedimento de concurso público de empreitada de obra pública. A ilegalidade desta norma procedimental cit. efectivamente existia e existe, como alega a autora, porque o inovador art. 149º-1 do CCP (No caso de contratos de concessão de obras públicas ou de concessão de serviços públicos, a entidade adjudicante pode adoptar uma fase de negociação das propostas) não permite a fase de negociação em concurso público de empreitada de obra pública (v. ainda os arts. 16º e 51º do CCP). E esta ilegalidade patente não pode ser, logicamente, protegida pelo instituto da boa fé na vertente do abuso do direito de acção.
O tribunal a quo entendeu que a actuação da A. é ilegal, porque abusiva (art. 334º CC), ao vir assim a juízo, pois a A. só atacou a adjudicação após conhecer a ilegalidade do art. 11º do PP e o facto de ter ficado em 2º lugar após a fase da negociação; se tivesse ficado em 1º lugar, nada diria.
Assim parece ter sido factualmente, mas a verdade é que a lei não impunha, nem o princípio da boa fé o impõe, que a A. fosse obrigada a atacar a dita ilegalidade antes da adjudicação, nem se demonstrou que tal ilegalidade, afirmada pelo tribunal a quo e causada pelo R., era sabida pela A.
Por outro lado, não há venire contra factum proprium. Com efeito, a A. não criou nenhuma situação de confiança na R.; e a posição do R., que causou uma violação do art. 149º CCP, não é legítima, não o pode ser, porque é ilegal.
De qualquer forma, também releva aqui a consideração de que o nº 2 do art. 100º CPTA é uma faculdade acrescida ao nº 1 do mesmo artigo.
O art. 6º-A do CPC, ao contrário do entendido pelo tribunal a quo, está destinado à Adm. Púb. apenas. Sem prejuízo do princípio geral da boa fé.
Aqui, portanto, a recorrente tem razão: não agiu com abuso do direito de acção outorgado pelos arts. 100º ss CPTA.
5)
Houve desrespeito do R. pelo prazo de impugnação administrativa facultativa (v. arts. 268º, 269º e 272º-2-c do CCP, 163º e 170º do CPA e 59º-4 do CPTA)?
O art. 59º-4 CPTA (5), invocado pela recorrente, é aqui aplicável em sede de art. 101º CPTA (assim: Ac. STA de 12-12-2006, Pr. nº 528/06; Ac. STA 6-2-2007, Pr. nº 598/06; Ac. TCAS 27-3-2008, Pr. nº 3504/08; Ac. TCAS 15-5-2008, Pr. nº 3695/08; ISABEL FONSECA, in D. Reg. e Local nº 4, p. 60, nota 23; MÁRIO AROSO…, Manual…, p. 341, e Comentário…, 3ª ed., pp. 678-679).
O recorrente refere-se neste ponto ao facto de o R. ter feito a adjudicação no mesmo dia em que foi feito o 2º relatório final fundamentado do júri. Não lhe teria sido dada a possibilidade de impugnar o 2º relatório final, parece (cfr. art. 124º, 153º e 154º do CCP; JORGE A. SILVA, Dicionário dos C.P., pp. 407-409; e CCP Comentado e Anot., anot. aos arts. 124º, 148º, 153º, 154º, 162º e 204º; MÁRIO e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e…, 2011, pp. 994 ss).
Mas este relatório não é impugnável, face ao disposto nos arts. 120º CPA, 51º CPTA e 148º e 269º CCP; ele vai servir como a base da decisão de adjudicar ou não. E nada proíbe tal decisão final no mesmo dia do relatório final.
Aqui, portanto, a recorrente não tem razão.
6)
Quanto a outro dos pedidos feitos na p.i., não tem sentido legal (v. art. 100º CPTA) anular a fase de negociação de propostas, o 2º Relatório Preliminar e o 2º Relatório Final, pois não são actos administrativos (impugnáveis), nem, pelo menos a dita fase, documentos conformadores do procedimento. A sua “erradicação” jurisdicional do procedimento resultará eventualmente de serem a ilegalidade que conduz à anulação da adjudicação.
7)
Assente que está a ilegalidade da fase de negociação prevista neste PP, cumpre, finalmente, afirmar que a p.i. não contém factualidade integrável na figura dos danos da responsabilidade civil delitual, sem prejuízo do art. 102º-4-5 CPTA.
8)
Aqui chegados, temos de concluir que a adjudicação (art. 73º-1 CCP (6)) é anulável (art. 135º CPA), porque assenta numa última fase procedimental antes da adjudicação proibida pelo art. 149º-1 CCP cit.
Como resulta do art. 148º CCP (7), não havia lugar aqui a um 2º relatório preliminar e/ou final dos referidos no art. 148º-2 CCP, porque não ocorreu nenhuma das previsões desta norma. E muito menos havia lugar aqui a um 2º relatório preliminar como previsto no inaplicável art. 152º CCP (8).
Ou seja, o R. devia-se ter ficado pelo 1º relatório final, assente no preço mais baixo apresentado pela A. (v. docs. 3 e 4 da p.i.)
Quer isto dizer que, antes de cometida a ilegalidade procedimental cit., que foi o acrescentar de uma fase legalmente proibida no caso concreto (v. art. 149º-1 CCP), tudo tinha decorrido licitamente. E, nesta licitude, se inclui o 1º relatório final, que graduou a A. em 1º lugar com base no preço mais baixo (art. 74º CCP (9)), o critério do concurso (arts. 148º-1-3-4 CCP).
A A. pede a condenação do R.
Este tipo de processo, dada a sua natureza urgente relacionada com imposições de direito comunitário por causa da tutela efectiva devida à concorrência, comporta a via impugnatória e a via condenatória à prática de actos administrativos. Afinal, a adjudicação é um acto de conteúdo ambivalente, que pode ter de ser substituído por outro que seja lícito ou devido (v. art. 47º-2-a) CPTA).
Cfr. assim:
- Ac. do STA de 24-11-2004, in CJA nº 53, pp. 3 ss,
- Ac. do TCAS de 13-1-2005, Pr. nº 394/04;
- MÁRIO AROSO…, Comentário…, 3ª ed., pp. 667-668, e
- Manual…, 2010, pp. 99-100, 136 e 318-319;
- SÉRVULO CORREIA, in CJA nº 54, pp. 6 ss, maxime p. 21.
Nestes termos e considerando o cit. art. 74º CCP, bem como o teor do procedimento apurado e os docs. 3 e 4 da p.i. (1º relatório preliminar e 1º relatório final), a conclusão do júri foi uma e a do R. só pode ser a mesma: o 1º lugar cabe à A.
Digamos que, assim, as possibilidades decisórias do R. ficaram reduzidas a uma só (MÁRIO AROSO…, Manual…, pp. 99-100), ou melhor, ao proposto pelo júri antes da ilegal fase de negociação. O R., no relatório final previsto no art. 148º-1 CCP, não concluiu haver deficiência de instrução, nem que as conclusões do júri naquele relatório final eram ilegais ou sem mérito; antes o contrário como resulta dos docs. 3 e 4 da p.i. (sobre isto, cfr. MÁRIO e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e…, 2011, pp. 1003 ss).
III. DECISÃO
Em conformidade com o exposto, acordam os juizes da Secção de Contencioso Administrativo do T.C.A.-Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, anular o acto de adjudicação impugnado e, de acordo com o (1º) relatório final elaborado ao abrigo do art. 148º-1 CCP, condenar o R. a praticar o seguinte acto devido: adjudicar de imediato o contrato à ora A.
Custas a cargo do MDN na 1ª instância e neste TCAS.
Lisboa, 9-6-11

Paulo Pereira Gouveia, relator
Cristina dos Santos
António Vasconcelos
(1) Art. 146º CCP.
(2) Art. 148º CCP.
(3) «Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando os efeitos de uma norma se produzam imediatamente, sem dependência de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação, o lesado ou qualquer das entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º pode obter a desaplicação da norma pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto.»

(4) «Artigo 11º Fase de negociação
1. Após o relatório final haverá lugar a uma fase de negociação, a realizar em conformidade com o artigo 150º do CCP.
2. Participam na fase de negociação, que incide apenas sobre o critério de adjudicação, os concorrentes cujas propostas, no relatório final, tenham ficado ordenadas nos três primeiros lugares.
3. A fase de negociação terá lugar na sede da EM EPC, em conformidade com o disposto nos artigos 120º e 121º do CCP.»
(5) «A utilização de meios de impugnação administrativa suspende o prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo, que só retoma o seu curso com a notificação da decisão proferida sobre a impugnação administrativa ou com o decurso do respectivo prazo legal.»
(6) A adjudicação é o acto pelo qual o órgão competente para a decisão de contratar aceita a única proposta apresentada ou escolhe uma de entre as propostas apresentadas.
(7) Artigo 148.º
Relatório final
1 - Cumprido o disposto no artigo anterior, o júri elabora um relatório final fundamentado, no qual pondera as observações dos concorrentes efectuadas ao abrigo do direito de audiência prévia, mantendo ou modificando o teor e as conclusões do relatório preliminar, podendo ainda propor a exclusão de qualquer proposta se verificar, nesta fase, a ocorrência de qualquer dos motivos previstos no n.º 2 do artigo 146.º
2 - No caso previsto na parte final do número anterior, bem como quando do relatório final resulte uma alteração da ordenação das propostas constante do relatório preliminar, o júri procede a nova audiência prévia, nos termos previstos no artigo anterior, sendo subsequentemente aplicável o disposto no número anterior.
3 - O relatório final, juntamente com os demais documentos que compõem o processo de concurso, é enviado ao órgão competente para a decisão de contratar.
4 - Cabe ao órgão competente para a decisão de contratar decidir sobre a aprovação de todas as propostas contidas no relatório final, nomeadamente para efeitos de adjudicação ou para efeitos de selecção das propostas ou dos concorrentes para a fase de negociação quando, nos termos do disposto na secção seguinte, seja adoptada essa fase.
(8) SECÇÃO VI
Fase de negociação das propostas
Artigo 152.º
Segundo relatório preliminar
1 - Após a análise das versões finais das propostas e a aplicação do critério de adjudicação, o júri elabora fundamentadamente um segundo relatório preliminar, no qual deve propor a ordenação das mesmas, podendo ainda propor a exclusão de qualquer proposta se verificar, nesta fase, a ocorrência de qualquer dos motivos previstos no n.º 2 do artigo 146.º
2 - O júri deve também propor a exclusão das versões finais das propostas que sejam apresentadas em violação do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 121.º
3 - Quando seja adoptada uma fase de negociação restringida aos concorrentes cujas propostas sejam ordenadas nos primeiros lugares, o júri deve ainda propor a exclusão das versões finais cuja pontuação global seja inferior à das respectivas versões iniciais.
4 - No caso previsto no número anterior, bem como no caso de o júri propor a exclusão das versões finais das propostas por ocorrer qualquer dos motivos previstos no n.º 2 do artigo 146.º, ou ainda no caso de não serem apresentadas versões finais das propostas, as respectivas versões iniciais mantêm-se para efeitos de adjudicação.
(9) Artigo 74.º
Critério de adjudicação
1 - A adjudicação é feita segundo um dos seguintes critérios:
a) O da proposta economicamente mais vantajosa para a entidade adjudicante;
b) O do mais baixo preço.
2 - Só pode ser adoptado o critério de adjudicação do mais baixo preço quando o caderno de encargos defina todos os restantes aspectos da execução do contrato a celebrar, submetendo apenas à concorrência o preço a pagar pela entidade adjudicante pela execução de todas as prestações que constituem o objecto daquele.

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