sexta-feira, 25 de novembro de 2011

SUSPENSÃO EFICÁCIA - ILEGALIDADE MANIFESTA - CONTRATAÇÃO PÚBLICA - NULIDADE CONTRATO - DECLARAÇÃO JUDICIAL

1480/09.4BEBRG  TCAN     15 de Abril de 2010

I. A alínea a) do nº1 do artigo 120º do CPTA exige que o julgador cautelar esteja apto a efectuar um juízo de certeza sobre a procedência da pretensão a deduzir na acção principal. Apenas este juízo lhe permitirá tomar uma atitude sobre o mérito da pretensão litigada, de forma a comprometer o próprio êxito da acção principal. Mas, se ele ocorrer, tal juízo de certeza será bastante, por si só, para poder ser decretada a providência cautelar.
II. Do artigo 283º nº1 do CCP [Código dos Contratos Públicos] ressuma, de uma forma manifesta, não existir uma automática comunicação da invalidade do acto procedimental ao acto consequente, ao contrato, e que é insuficiente a mera declaração administrativa de nulidade do acto procedimental para que possa ser considerado nulo o contrato, exigindo-se, para tanto, uma declaração judicial de nulidade.
III. Estava vedado, ao município, declarar a nulidade do contrato de empreitada de obra pública que celebrou com a requerente cautelar, enquanto decorrência da nulidade do caderno de encargos, sem que esta nulidade tivesse sido declarada pelo tribunal, e ao fazê-lo, o município praticou acto que a própria lei reserva ao poder judicial. Incorreu assim, de forma manifesta, em usurpação de poder, ilegalidade sancionada com a nulidade.
IV. Perante este juízo de certeza, o julgador cautelar terá de decretar a pretendida suspensão de eficácia da decisão administrativa que declarou tal nulidade do contrato, com base, exclusivamente, na alínea a) do nº1 do artigo 120º CPTA

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
Relatório
D…, SA – com sede na Avenida …, Amares – interpõe recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal [TAF] de Braga - em 19.11.2009 - que lhe indeferiu o pedido cautelar de suspensão de eficácia da deliberação de 24.07.2009 da Câmara Municipal de Amares [CMA] – neste processo cautelar que a ora recorrente deduziu contra o Município de Amares [MA], é pedida a tribunal a suspensão de eficácia da deliberação camarária de 24.07.2009, que declarou a nulidade do caderno de encargos, do procedimento e do contrato relativo à empreitada de construção do Centro Escolar de Amares – 1ª Fase – Estrutura, e a intimação do requerido a declarar se opta pela resolução do contrato e, na negativa, a apresentar-lhe ordem de execução dos trabalhos de suprimento de erros e omissões e o projecto de alteração do projecto de estabilidade da obra, e a abster-se de iniciar novo procedimento concursal e de adjudicar e celebrar novo contrato para execução dos trabalhos objecto do concurso.
Conclui as suas alegações da forma seguinte:
1- A requerente cautelar peticiona que seja decretada a suspensão da eficácia da deliberação de 24.07.2009 da Câmara Municipal de Amares [CMA], que declarou a nulidade do caderno de encargos, do procedimento pendente à formação do contrato e do contrato, tudo da empreitada de construção do Centro Escolar de Amares – Primeira Fase – Estrutura;
2- No âmbito das empreitadas de obras públicas, as declarações do contraente público sobre a validade do contrato constituem meras declarações negociais, pelo que, na ausência de acordo com a contraparte [como sucedeu in casu], o requerido apenas pode obter os efeitos pretendidos através do instrumento judicial adequado, nomeadamente da acção administrativa comum;
3- É o que estabelece o artigo 307º nº1 do Código dos Contratos Públicos [CCP], do qual decorre que a competência para declarar a invalidade do contrato de empreitada de obras públicas é uma competência judicial e não uma competência administrativa;
4- Pelo que a prática, pelo requerido, do acto impugnado [de 24.07.2009] constituiu uma manifesta usurpação de poder e, por conseguinte, um acto nulo, uma vez que traduz a prática de um acto reservado à competência dos tribunais;
5- Isso mesmo foi alegado pela requerente no capítulo IV da sua petição inicial, em consequência do que concluiu ser notória a ilegalidade da deliberação sub judice e estar verificado o requisito do artigo 120º nº1 alínea a) do CPTA;
6- O próprio tribunal recorrido refere expressamente que “a declaração de nulidade não é a forma adequada” [páginas 5/9 da sentença] e que “o acto praticado é ilegal, porque alheio às atribuições do requerido” [páginas 6/9];
7- O que revela uma profunda contradição da sentença recorrida, pois nela se reconhece que o acto impugnado é ilegal, mas nela se diz também que, apesar disso, não é evidente a pretensão da requerente;
8- Essa evidência da procedência da pretensão do requerente é palmar, pois a declaração de invalidade do contrato é claramente da competência dos tribunais e não da administração;
9- E, se assim é, e se, por assim ser, o acto é nulo por usurpação de poder [conforme foi oportunamente alegado pela requerente], por força do disposto no artigo 133º nº2 alínea a) do CPA, o tribunal mais não tinha senão que declarar a procedência da providência cautelar, ao abrigo do artigo 120º nº1 alínea a) do CPTA;
10- A providência cautelar requerida é de suspensão de eficácia do acto impugnado, sendo uma providência conservatória;
11- A providência deverá ser concedida a menos que seja manifesta a falta de fundamento da pretensão [artigo 120º nº1 alínea b) do CPTA], o que constitui uma espécie de inversão do ónus de prova;
12- O tribunal considerou verificado o fumus boni iuris, atenta a ilegalidade do acto administrativo recorrido, pelo que, também por este requisito deverá conceder-se a providência requerida;
13- A análise que o tribunal fez quanto ao requisito do periculum in mora é, por um lado, redutora e, pelo outro, errónea;
14- Com efeito, o requisito abrange 2 tipos de previsão: o fundado receio da constituição de situação de facto consumado; ou o fundado receio de produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa proteger;
15- O fundado receio a que a lei se refere abrange agora também os casos em que, se a providência for recusada se tornará impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade. É este o único sentido a atribuir à expressão facto consumado;
16- Quanto à outra vertente do requisito, em que se trata de aferir da possibilidade de se produzirem prejuízos de difícil reparação, o critério não pode ser o da susceptibilidade ou insusceptibilidade de avaliação pecuniária dos danos, mas deve ser o da maior ou menor dificuldade que envolve o restabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar;
17- A requerente alegou [artigo 105º da petição inicial] ser evidente o periculum in mora, perante o iminente início de um novo procedimento concursal e de adjudicação da obra a outro empreiteiro, o que traduziria a consumação da lesão do direito da requerente a executar a obra;
18- Na sua oposição, o requerido afirmou peremptoriamente que durante o decurso do processo judicial irá decorrer novo procedimento concursal e, em reunião ordinária do órgão executivo do requerido, foi deliberada a necessidade imperiosa de iniciação de um novo procedimento concursal;
19- O início de novo procedimento concursal, que o requerido quer pôr imediatamente em curso, como indubitavelmente afirmou nos autos, e a consequente adjudicação da obra a um outro empreiteiro constitui a demonstração clara, através da confissão factual, do fundado receio invocado pela requerente, que se traduzirá na impossibilidade de, no plano dos factos, reintegrar a situação conforme a legalidade, impedindo a requerente de executar a obra, ainda que a acção venha a ser totalmente procedente;
20- O requisito do periculum in mora deve considerar-se verificado em casos de impossibilidade de reintegração específica da sua esfera jurídica, no caso do processo principal vir a ser julgado procedente;
21- Os factos demonstram estar também verificados os requisitos do periculum in mora;
22- O requerente não tem o ónus de alegar qualquer matéria a propósito da ponderação dos interesses públicos e privados;
23- Em primeiro lugar, porque a própria lei o diz, no artigo 120º nº5 do CPTA, quando determina que o tribunal julga verificada a inexistência de lesão para o interesse público, quando a autoridade requerida a não invoque;
24- Depois, porque se trata de uma situação semelhante à dos procedimentos cautelares não especificados, em processo civil [artigo 387º CPC], pelo que se deve entender que impende sobre os requeridos o ónus da alegação da circunstância [impeditiva] a que o preceito se refere – assim como o ónus da respectiva prova, no sentido em que […] é sobre os requeridos que recairão as consequências negativas da eventual falta de prova dos danos superiores aos que ameaçam o requerente que resultariam da adopção da providência requerida;
25- Não pode, portanto, a requerente ser penalizada por não ter alegado matéria que lhe não incumbia alegar, suprindo antecipadamente um ónus do requerido;
26- A alegada falta de habilitação técnica da requerente para executar os trabalhos de suprimento de erros e omissões detectados é uma falsa questão;
27- Em lado algum está demonstrada ou esclarecida a natureza dos trabalhos de suprimento de erros e omissões que haverá que executar na obra, pois o que foi dado como provado no ponto 12 do relatório foi o teor da deliberação municipal, sendo aqui e apenas aqui que se refere a necessidade de execução de estacaria nas fundações;
28- Para que se possa concluir, como na sentença, sobre a falta de competência técnica para continuar a executar a obra, seria necessário que os autos dispusessem de matéria de facto provada muito mais vasta do que a que consta do relatório;
29- A matéria de facto provada não permite ao tribunal concluir sobre a falta de competência técnica da requerente para executar a obra;
30- Pelo contrário, tal competência foi expressamente reconhecida pelo requerido ao adjudicar a obra à requerente;
31- Do que se trata não é da habilitação para executar a obra tal como a mesma foi posta a concurso, mas para executar os trabalhos de suprimento de erros e omissões que o requerido diz serem necessários, os quais nunca foram transmitidas à requerente, nem os mesmos constam da matéria de facto provada;
32- Também não está demonstrado qual seja o valor de tais trabalhos, o que se verifica pela completa omissão de matéria de facto provada a este propósito;
33- O que nos traz ao processo é que o concurso foi lançado com um determinado projecto e que, já na fase de execução, constatou-se existirem erros e omissões que exigem a realização de determinados trabalhos de suprimento;
34- A resposta a esta questão é-nos dada nos termos dos artigos 376º e seguintes do CCP, conforme alegado pela requerente nos artigos 78º e seguintes da petição inicial;
35- Assim, o requerido apenas tem que decidir se opta por resolver o contrato ou se altera o projecto e notifica o empreiteiro dessa alteração;
36- Se suceder que o valor dos trabalhos de suprimento de erros e omissões supera em mais de 50% o valor do próprio contrato, o requerido poderá estar obrigado a lançar novo procedimento, mas apenas para os trabalhos de suprimento dos erros e omissões, mantendo-se, quanto ao mais, o contrato celebrado com a requerente;
37- Neste último caso, o contrato sub judice manter-se-á suspenso – tal como actualmente se encontra - até que os trabalhos respectivos possam ser executados, nomeadamente após a realização dos trabalhos de suprimento de erros e omissões;
38- Ao que acresce que nada impede a subcontratação por parte da requerente, uma vez que esta demonstrou dispor de habilitação suficiente para os trabalhos postos a concurso, sendo admissível a subcontratação nos termos dos artigos 317º, 319º, 383º, nº2 e 385º do CCP e 40º do Caderno de Encargos sub judice;
39- O mesmo é permitido pelo artigo 27º nº2 do DL nº12/2004, de 12.01, sendo inaplicável o disposto no artigo 12º do mesmo diploma [a que se refere o requerido];
40- Não é por facto da requerente que os trabalhos não se encontram concluídos, mas por motivo da responsabilidade do requerido, quer porque é o projecto que o próprio requerido elaborou que carece de alterações, quer porque o requerido se recusa a implementar as referidas alterações oportunamente, preferindo deitar pela janela todo o trabalho e despesa efectuada, com o concurso, o contrato e os trabalhos executados, voltando atrás e pretendendo dar início a um novo procedimento para a totalidade da obra e não apenas para os trabalhos de suprimento dos erros e omissões;
41- É, pois, o requerido quem trabalha em prejuízo do interesse público e não a requerente que lhe dá causa por força da suspensão do acto impugnado, motivado pelo presente procedimento cautelar;
42- Ao que acresce ainda que a requerente não se limitou a requerer a suspensão do acto administrativo, mas antes apontou expressamente o caminho que a administração deveria seguir para minorar o impacto decorrente da suspensão dos trabalhos [a qual é da própria responsabilidade do requerido, como se reconhece]. E, por isso, requereu que o requerido fosse intimado a decidir-se pela resolução do contrato ou pela notificação do projecto de alterações, sendo que qualquer desses actos é susceptível de ser bem mais célere na superação e esclarecimento da situação do que a via autista que o Município optou por seguir;
43- O exposto revela que a requerente de moto próprio apontou as medidas tendentes a mitigar os impactos do presente procedimento, pelo que o requerido, recusando-os, apenas se pode queixar de si próprio;
44- E é [também] por isto que a ponderação equilibrada dos interesses públicos e privados em jogo deve pender para o lado da requerente, tanto mais que se admite a atribuição, no caso concreto, da providência cautelar, mesmo relativamente a decisões administrativas que, em abstracto seria de presumir que, pela natureza dos interesses que visam proteger, careceriam de urgente execução” - Mário Aroso de Almeida, obra citada, página 257;
45- Mostram-se verificados todos os requisitos de que depende a concessão da presente providência cautelar de suspensão da eficácia do acto de 24.07.2009;
46- Com efeito, é evidente a procedência da pretensão da requerente, por ser manifesta a ilegalidade do acto, como o próprio tribunal reconhece;
47- Por outro lado e ainda que assim não fosse, o fumus boni iuris e o periculum in mora estão presentes e, da matéria de facto provada, nada consta que possa fazer prevalecer o interesse público sobre o interesse da requerente;
48- Deverá, pois, ser concedida a providência, promovendo-se a revogação da sentença recorrida;
49- Ao decidir como decidiu, o tribunal violou, entre outras as disposições dos artigos 120º nº1 alíneas a) e b) e nº2 e nº5 do CPTA, 307º, 376º e seguintes do CCP, 317º, 319º, 383º nº2 e 385º do CCP, 40º do Caderno de Encargos e 27º nº2 do DL nº12/2004, de 12.01.
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida.
O Município recorrido contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida, mas sem formular quaisquer conclusões.
O Ministério Público pronunciou-se [artigo 146º nº1 do CPTA] pelo não provimento do recurso jurisdicional.
A recorrente, notificada desta pronúncia, veio dela discordar, e reiterar as suas teses.
De Facto
São os seguintes os factos considerados provados na sentença recorrida:
1- O Município de Amares, na qualidade de entidade adjudicante, lançou e anunciou concurso público tendente à celebração de contrato de Empreitada de Obras Públicas, designado Construção do Centro Escolar de Amares – 1ª Fase Estrutura;
2- O respectivo anúncio de procedimento com o número 883/2008, foi publicado no Diário da República II Série, nº246, de 22.12.2008;
3- Essa obra foi adjudicada à requerente e, em 31.03.2009, foi celebrado o contrato de empreitada, com a referência 122-DVM, pelo preço contratual de 398.232,09€, acrescido de IVA à taxa legal em vigor [ver documento nº7, junto com o requerimento inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais];
4- Em 31.03.2009, foi efectuada a configuração da obra e assinado o respectivo auto [ver documento nº8, junto com o requerimento inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais];
5- A requerente iniciou os trabalhos, efectuou a limpeza geral do terreno, incluindo desmatação, abate de árvores e transporte a vazadouro, efectuou a implantação de obra de acordo com as indicações do projecto, incluindo todos os trabalhos de topografia necessários, balizamento, colocação e conservação de marcas, eixos e demais trabalhos necessários, movimentos de terras, com escavação geral do terreno para implantação do edifício, em terreno compacto, transporte e depósito nas imediações do estaleiro, num total de 2.000,432m³;
6- Foram efectuadas as respectivas medições, elaborados e aprovados os autos de medição nº1 e nº2 e emitidas as respectivas facturas, conforme cópias que adiante se juntam e aqui se dão como integralmente reproduzidas [ver documentos nº9, 10, 11 e 12, juntos com o requerimento inicial e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais];
7- Em 08.05.2009, após reunião realizada na obra entre a requerente e a requerida, foi verificado que os níveis freáticos do terreno eram bastante elevados, o que implicaria a execução de drenos [que não se encontravam previstos no projecto de execução] e a necessidade de ser estudada uma alternativa na zona das sapatas isolada, ficando a requerida de analisar a possibilidade de subida da cota de soleira do edifício [ver documento nº13, junto com o requerimento inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais];
8- Em resposta, a 12.05.2009, a requerida comunicou à requerente a nova cota de implantação do edifício [subida de 110,00 para 110,50, relativamente à soleira do rés-do-chão] [ver documento nº14, junto com o requerimento inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais];
9- Em reunião de 27.05.2009, ficou decidido que a requerida iria contactar uma empresa no sentido de ser feito um ensaio geotécnico na obra, para confirmar ou não a viabilidade do projecto de estabilidade que integrou as peças do procedimento [ver documento nº16, junto com o requerimento inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais];
10- Na mesma data, por fax de 27.05.2009, a requerente informou a requerida por meio de fax, recebido por esta na mesma data, que os trabalhos de escavação se encontravam parcialmente suspensos, uma vez que não era possível proceder à abertura dos caboucos para as sapatas de pilares e paredes [ver documento nº16, junto com o requerimento inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais];
11- Em reunião ordinária de 24.07.2009, o órgão executivo da Câmara Municipal de Amares declarou a nulidade do caderno de encargos, do procedimento tendente à formação do contrato e do contrato, tudo da empreitada de construção do Centro Escolar de Amares – Primeira Fase – Estrutura, o que foi notificado à requerente pelo ofício 702/2009/DARH-SJ/JB-IP, recebido em data não anterior a 28.07.2009;
12- Tal deliberação assentou nos seguintes fundamentos:
a) Durante a execução dos trabalhos de movimentação de terras constatou-se que o terreno não apresenta as características previstas, isto é, a sua natureza não se compadece com a solução construtiva projectada para as fundações;
b) A especificidade do terreno impõe a execução das fundações em “estacaria”, processo construtivo diferente do previsto no projecto de obra e para a qual o empreiteiro a quem foi adjudicada a obra não se encontra habilitado [não possui alvará para a execução daquela obra] [ver documento nº22, junto com o requerimento inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais].
Esta a factualidade provada, e não impugnada neste recurso.

De Direito
I. Cumpre apreciar as questões suscitadas pela recorrente, o que deverá ser efectuado dentro das balizas estabelecidas, para tal efeito, pela lei processual aplicável – ver artigos 660º nº2, 664º, 684º nº3 e nº4, e 685º-A, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 140º do CPTA, e ainda artigo 149º do CPTA, a propósito do qual são tidas em conta as considerações interpretativas tecidas por Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 9ª edição, páginas 453 e seguintes, e por Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista, página 850 e 851, nota 1.
II. A requerente cautelar pediu ao tribunal que suspendesse a eficácia da deliberação tomada pela CMA em 24.07.2009 – através da qual foi declarada a nulidade do caderno de encargos, do procedimento e do contrato relativo à empreitada de construção do Centro Escolar de Amares/1ª Fase/Estrutura - e intimasse o requerido a declarar se opta pela resolução do contrato celebrado e, na negativa, a apresentar-lhe ordem de execução dos trabalhos de suprimento de erros/omissões, a apresentar-lhe o projecto de alteração do projecto de estabilidade da obra, e a abster-se de iniciar o novo procedimento de concurso.
Para esse efeito, articula que a referida deliberação camarária é manifestamente ilegal [artigo 120º nº1 alínea a) CPTA], e a propagação da sua eficácia é bem susceptível de vir a configurar uma situação de facto consumado [artigo 120º nº1 alínea b) CPTA].
O TAF de Braga decidiu indeferir a pretensão cautelar que lhe foi solicitada, por entender que não é evidente a procedência do pedido a formular no processo principal [artigo 120º nº1 alínea a) do CPTA], e, ainda, que a requerente cautelar não articulou factos concretos capazes de integrar o indispensável requisito do periculum in mora [artigo 120º nº1 alínea b) CPTA]. Para além disso, salientou que sempre o pedido cautelar teria de sucumbir em sede de ponderação de interesses [artigo 120º nº2 CPTA].
A requerente cautelar, como recorrente, discorda desta decisão judicial, e imputa-lhe errado julgamento na apreciação e decisão dos pressupostos indispensáveis ao deferimento da suspensão de eficácia requerida.
À decisão desses erros de julgamento se reduz, pois, o objecto deste recurso jurisdicional.
III. A recorrente defende que, ao contrário do que foi decidido pelo tribunal a quo, é evidente a procedência da pretensão que vai deduzir no processo principal, por ser manifesta a ilegalidade do acto em causa [artigo 120º nº1 alínea a) do CPTA].
Essa ilegalidade consistirá numa usurpação de poder, pois que, a seu ver, a CMA, enquanto órgão da administração local, não poderá declarar uma invalidade cuja apreciação e decisão é da competência dos tribunais [invoca o artigo 307º nº1 do Código dos Contratos Públicos (CCP) aprovado pelo DL nº18/2008 de 29.01].
Assim, por manifesta usurpação de poder, a recorrente defende que a deliberação suspendenda será nula [artigo 133º nº2 alínea a) do CPA], e que a sua pretensão cautelar deverá ser deferida ao abrigo da alínea a) do nº1 do artigo 120º do CPTA.
É sabido que esta alínea a) exige que o julgador cautelar esteja apto a efectuar um juízo de certeza sobre a procedência da pretensão a deduzir pela requerente na acção principal. Ou seja, o julgador tem de poder concluir, sem margem para dúvidas, que ocorre usurpação de poder, porque esta ilegalidade é ostensiva, é evidente. Só este tipo de juízo lhe permitirá tomar uma atitude sobre o mérito da pretensão litigada, de forma a comprometer o próprio êxito da acção principal. Mas, se ele ocorrer, tal juízo de certeza será bastante, por si só, para poder ser decretada a providência cautelar.
Historiemos o presente caso.
Culminando concurso público para o efeito, o município requerido adjudicou a obra de construção do Centro Escolar de Amares [1ª Fase] à sociedade requerente, com a qual veio a celebrar, em 31.03.2009, o respectivo contrato. Todo o procedimento foi efectuado ao abrigo do novo Código dos Contratos Públicos [CCP aprovado pelo DL nº18/2008 de 29.01].
Durante a execução dos trabalhos de movimentação de terras, constatou-se que o terreno diferia das características previstas, porque a sua natureza não suportava a solução construtiva projectada para as respectivas fundações, impondo a execução destas em estacaria, processo construtivo diferente do que tinha sido previsto no projecto da obra [foram verificados níveis freáticos elevados, o que implicaria a execução de drenos que não estavam previstos no projecto de execução, bem como a necessidade de ser estudada uma alternativa na zona das sapatas isoladas, a subida da cota de implantação do edifício, tudo exigindo uma alteração do projecto de estabilidade].
Os trabalhos foram então suspensos, e iniciou-se uma fase de contactos entre as partes contratantes, um tanto confusa, e que veio a desaguar na deliberação camarária cuja eficácia a empreiteira quer ver suspensa [24.07.2009].
Através dessa deliberação, foi declarada a nulidade do caderno de encargos, do procedimento de concurso e do contrato celebrado, por se ter constatado que o terreno destinado à implantação da obra não apresentava as características previstas […] antes impunha a execução das fundações em estacaria, processo construtivo diferente do previsto no projecto de obra, e para o qual o empreiteiro a quem foi adjudicada a obra não se encontrava habilitado, por não possuir o respectivo alvará.
E essa deliberação foi tomada tendo como fundamento jurídico, fundamentalmente, o disposto no artigo 43º nº8 alínea c) do CCP, que comina com a nulidade o caderno de encargos quando o projecto de execução nele integrado não esteja acompanhado dos necessários estudos geológicos e geotécnicos, sendo que se concluiu, a partir do nº1 e do nº5 alínea b) desse artigo 43º [onde se exige que o projecto de execução de empreitada de obra pública seja acompanhado, sempre que se revele necessário, de estudos geológicos e geotécnicos], conjugado com a Portaria nº701-H/2008 de 29.07 [aprovou o conteúdo obrigatório do programa e do projecto de execução], pela obrigatoriedade e indispensabilidade dos estudos geológicos e geotécnicos, peça essa fundamental e que foi omitida no caso concreto. E teve, ainda, um fundamento jurídico suplementar, já que esteve presente o entendimento de que o contrato sempre seria nulo por impossibilidade originária de execução do seu objecto [artigos 280º nº1 e 401º nº1 do CC].
Nesta base, e ainda porque a nulidade pode ser declarada, a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal [artigo 134º CPA], a CMA decidiu declarar nulo o caderno de encargos, o que, entendeu, implicava a nulidade do procedimento da formação do contrato e do próprio contrato entretanto celebrado, de que o caderno de encargos é parte integrante [artigo 96º nº1 alínea c) do CCP].
Vejamos.
Resulta evidente que o que preocupa a recorrente é, sobretudo, a declaração de nulidade do contrato de empreitada de obra pública que foi com ela celebrado, e que essa declaração de nulidade derivou, no caso, da declaração de nulidade do caderno de encargos e de todo o procedimento de formação do contrato.
Estamos, portanto, perante uma invalidade derivada do contrato administrativo, que tem sede regulamentar no artigo 283º do CCP. Estipula o nº1 desta norma [283º CCP] que os contratos são nulos se a nulidade do acto procedimental em que tenha assentado a sua celebração tenha sido judicialmente declarada ou possa ainda sê-lo.
A interpretação desta norma legal aponta, sem que a tal respeito se constate divergências ao nível da doutrina, para que se considere acto procedimental em que tenha assentado a celebração do contrato tanto os actos administrativos como os regulamentos do concurso, tendendo a exigir-se que esse acto procedimental, assim entendido, esteja minado por vício de natureza material, nomeadamente relativo ao seu conteúdo, que impeça a administração de o renovar [qua tale] sem repetir o vício.
E cremos não haver dúvidas razoáveis sobre o sentido a atribuir a essa estatuição legal. Efectivamente, com ela pretendeu-se afastar a invalidade automática do contrato, decorrente do regime geral da nulidade [artigo 134º nº2 CPA, segundo o qual a nulidade pode ser declarada, a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou pelo tribunal], e exigir a intervenção do tribunal, de tal forma que a nulidade do acto procedimental só se comunica ao contrato que nele assente se aquela for declarada judicialmente, ou puder ainda vir a sê-lo.
Note-se que esta interpretação não afecta, como é bom de ver, os poderes administrativos de declaração da nulidade dos actos [artigo 134º nº2 e 141º nº1 CPA], porque o artigo 283º nº1 do CCP apenas se limita a estipular que, para este específico efeito de invalidação derivada do contrato, só releva a declaração de nulidade judicial.
Temos, portanto, que a declaração administrativa da nulidade do acto procedimental não é suficiente para preencher o pressuposto da invalidação do contrato, sendo que tal solução se compreende, por estar em causa um pressuposto da invalidação do contrato, matéria esta em que a administração não dispõe de poderes de autoridade, pois, como resulta do disposto no artigo 307 nº1 do CCP, as declarações do contraente público sobre validade do contrato têm natureza meramente negocial não revestindo natureza de acto administrativo.
Nem se veja na referência legal à preclusão temporal da invocação dos vícios de legalidade do acto procedimental [ou puder ainda sê-lo] qualquer conflito insanável com o regime geral da declaração da nulidade dos actos [artigo 134º nº2 do CPA, segundo o qual a nulidade é invocável a todo o tempo], porque a verdade é que basta lembrar a hipótese e a possibilidade previstas nos artigos 133º nº2 alínea i) [acto administrativo consequente de acto anteriormente invalidado] e 134º nº2 do CPA [admite que aos actos administrativos nulos sejam reconhecidos efeitos jurídicos], bem como o regime atípico de nulidade previsto na actual legislação urbanística [limita a dez anos a possibilidade de invocação da nulidade de actos autorizativos], para se compreender a prudência do legislador.
Ressuma, assim, de forma assaz manifesta, que não existe uma automática comunicação da invalidade originária ao acto consequente, ao contrato, e que é insuficiente a mera declaração administrativa de nulidade do acto procedimental para que possa ser considerado nulo o contrato, porque o artigo 283º nº1 do CCP exige, para o efeito, uma declaração de nulidade judicial [tivemos em conta, nesta síntese, os estudos de Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Contratos Públicos - Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, 2008, páginas 125-126; Pedro Gonçalves, O Contrato Administrativo. Uma instituição do direito administrativo do nosso tempo, Coimbra, 2003, páginas 140-141; José Vieira de Andrade, A propósito do regime do contrato administrativo no Código dos Contratos Públicos, in Estudos Comemorativos dos dez anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Coimbra, 2008, páginas 338-352; José Pacheco de Amorim, A invalidade e a ineficácia do contrato administrativo no Código dos Contratos Públicos, in Estudos da Contratação Pública – I, CEDIPRE, Coimbra, 2009, páginas 627-644; Jorge Andrade da Silva, Código dos Contratos Públicos, Almedina, 2008, páginas 630-634; e Mário Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco Amorim, in Código do Procedimento Administrativo Comentado, Almedina, 2ª edição, página 653].
Estava vedado, portanto, à CMA declarar a nulidade do contrato de empreitada de obra pública que celebrou com a agora requerente cautelar, enquanto decorrência da nulidade do caderno de encargos, sem que esta nulidade tivesse sido declarada pelo tribunal. E ao fazê-lo, a CMA, enquanto órgão da administração, praticou acto que a própria lei reserva ao poder judicial. Incorreu assim, de forma manifesta, em usurpação de poder, ilegalidade sancionada com a nulidade [artigo 133º nº2 alínea a) do CPA].
Confrontado com este juízo de certeza, o julgador cautelar terá de decretar a pretendida suspensão de eficácia com base [exclusivamente] na alínea a) do nº1 do artigo 120º do CPTA, e isto, relativamente quer à declaração de nulidade do contrato, quer à declaração de nulidade do caderno de encargos e procedimento de formação do contrato, na medida em que consubstanciam nulidades fundamentadoras daquela.
IV. Mas a requerente cautelar pede mais: que o tribunal intime o MA a declarar se opta pela resolução do contrato e, na negativa, a apresentar-lhe ordem de execução dos trabalhos de suprimento de erros e omissões e o projecto de alteração de estabilidade da obra, e a abster-se de iniciar novo procedimento concursal e de adjudicar e celebrar novo contrato para execução dos trabalhos.
Trata-se agora, como é bom de ver, de pretensão antecipatória, sobre a qual o tribunal a quo não se debruçou por ter improcedido, desde logo, a providência conservatória da suspensão de eficácia.
Para o seu deferimento, e a nível de fumus boni juris, deverá o julgador cautelar estar habilitado a efectuar o juízo de certeza a que já acima nos referimos, o que permitiria o seu deferimento imediato, sem mais requisitos, ou, pelo menos, estar habilitado a fazer o juízo de aparência positiva a que se refere a alínea c) do nº1 do artigo 120º do CPTA: ser provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo [o processo principal] venha a ser julgada procedente.
Ora, temos por certo que no presente caso não há possibilidade de formular nem um nem outro destes dois juízos, desde logo porque a requerente cautelar não especifica que tipo de acção principal irá propor, e qual o pedido, ou pedidos, que nela irá deduzir. E se, como tudo agora indica, propuser uma acção administrativa especial, visando a condenação do MA à prática de acto devido, perante a necessidade de se proceder a processo construtivo diferente, cremos que a falta de alvará da recorrente para realizar esse novo processo construtivo não nos permite antever a probabilidade positiva, muito menos a certeza, do êxito da sua pretensão. E isto bastará para que esta providência deva ser indeferida.
De qualquer forma, e agora a nível do periculum in mora, exigido também pela alínea c) do nº1 do dito artigo 120º, sempre a pretensão de natureza antecipatória deveria sucumbir.
Na verdade, a requerente invocou, apenas, a ocorrência de uma alegada situação de fundado receio de facto consumado: o início de novo processo concursal e nova adjudicação a outro empreiteiro.
Ora, sendo sobretudo um interesse de natureza económica que move a requerente cautelar, sempre ela poderá ver indemnizados os seus eventuais danos, através de acordo ou por via judicial, e, mesmo que persista no intento de executar o contrato, nada impede que se volte a candidatar, nomeadamente agrupada com outras empresas, de modo a poder executar o processo de construção reclamado pelas condições do terreno reservado à implantação da obra.
Deverá, assim, ser concedido parcial provimento ao recurso, ser revogada a sentença recorrida, e ser deferida, apenas, a providência cautelar conservatória deduzida nos autos.
Decisão
Nestes termos, decidem os Juízes deste Tribunal Central, em conferência, conceder parcial provimento ao recurso jurisdicional, revogar a sentença recorrida, suspender a eficácia da deliberação de 24.07.2009 da Câmara Municipal de Amares, objecto destes autos, indeferindo a pretensão cautelar no demais.
Custas pela recorrente e recorrido, nas duas instâncias, e em partes iguais – artigos 446º, 447º, 447º-C e 447º-D, todos do CPC, 189º do CPTA, 1º, 2º, 3º nº1, 6º nº2, 7º nº2, 12º nº2, 13º nº1 e 29º nº2, todos do RCP, bem como Tabela I-B a ele Anexa.
D.N.
Porto, 15 de Abril de 2010
Ass. José Augusto Araújo Veloso
Ass. Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro
Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho

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